Documentário sobre Luis Fernando Verissimo reforça a reputação de lacônico, que sempre acompanhou o escritor gaúcho de humor sofisticado. Em uma hora e meia de filme, o autor fala muito pouco — ainda mais por ser o foco da produção.
Mas ele observa muito, sempre atento a tudo o que se passa ao seu redor, o que talvez explique a sua perspicácia ao satirizar as particularidades da realidade brasileira.
Uma das atrações da 29ª edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, que termina no domingo, 14 de abril, Verissimo captura o espírito do protagonista, mesmo sem longos depoimentos.
Trata-se de um olhar mais íntimo sobre a vida pacata do escritor, um dos mais respeitados do País, com mais de 80 obras publicadas e 5 milhões de cópias vendidas.
O autor de Ed Mort e Outras Histórias (1979), O Analista de Bagé (1981) e Comédias da Vida Privada (1994), entre outros títulos, é seguido pela câmera, principalmente em casa. Ele mora em Porto Alegre, no casarão herdado do pai, o também escritor Érico Verissimo (1905-1975).
“Meu pai também era introvertido, mas talvez ele fosse um pouco mais social do que eu”, diz Verissimo no filme, referindo-se ao autor da trilogia O Tempo e o Vento (publicada entre 1949 e 1962), Olhai os Lírios do Campo (1938) e Incidente em Antares (1971), entre outras obras. “Nós não conversámos sobre literatura”, comenta Verissimo.
O documentário foi filmado durante duas semanas, em setembro de 2016, quando Verissimo estava prestes a completar 80 anos. Atualmente, aos 87, o escritor ainda está se recuperando do AVC sofrido em 2021.
De repente, 80
“A gente se distrai e, quando vê, está com 80 anos. Já vivi dez a mais do que o meu pai, que também era cardíaco. Eu tive mais recursos, que me ajudaram a viver até agora”, conta Verissimo, visto no filme fazendo exercícios de fisioterapia, cumprindo a rotina de exames e pedindo ajuda para se levantar da cadeira.
Durante a filmagem de Verissimo, a ser lançado em circuito comercial no Brasil em 2 de maio, o autor ainda estava ativo profissionalmente. Muitas vezes, ele é filmado em seu escritório, escrevendo no computador.
É um modelo antigo, de mesa, onde alguém colou uma frase no alto da tela: “save new documents before starting to write” (“salve novos documentos antes de começar a escrever”). Assim mesmo, em inglês, idioma que Verissimo aprendeu na infância e na adolescência, no período em que morou nos Estados Unidos. Nos anos 1940, o pai foi professor de literatura brasileira na Universidade da Califórnia, em Berkeley.
A janela do escritório do escritor dá para a varanda, onde os familiares muitas vezes estão reunidos, beliscando algo à mesa, enquanto Verissimo só os observa.
Às vezes, ele para, ouve as conversas, mas logo volta a escrever. Se não está trabalhando em seus livros ou nas crônicas para os jornais, é visto inserido na rotina tranquila da casa.
Cenas do cotidiano
A abordagem escolhida inevitavelmente remete à obra de Verissimo, conhecido por aproveitar em seus textos cenas do cotidiano, situações que outros normalmente deixariam passar.
A câmera de Angelo Defanti, o diretor do filme, fica muitas vezes parada, em algum canto da casa. Ele conseguiu o privilegiado acesso por já ser um conhecido da família.
Como curta-metragista, ele adaptou duas obras do autor: Maridos, Amantes e Pisantes (2007) e Feijoada Completa (2012). Em 2022, Defanti ainda assinou o longa-metragem baseado no livro O Clube dos Anjos, de 1998.
Na sala de Verissimo, o diretor registra o escritor lendo jornais (no impresso, sempre), vendo televisão com toda a família ou acompanhando a bagunça dos netos.
Sobretudo da neta, enquanto ela dança embalada pela trilha do musical Hamilton, em um aparelho de som antigo, que o escritor logo desliga quando a garota finalmente sai da sala.
Quase tudo se passa com Verissimo em absoluto silêncio, até na hora das refeições em família. Praticamente todo mundo em volta da mesa conversa, menos o homem celebrado por jogar com as palavras escritas com tanta habilidade – em sua linguagem clara, coloquial, bem elaborada e humorística.
Mesmo na festa de seu 80º aniversário, o ponto alto do documentário, Verissimo fala o mínimo possível. Enquanto os amigos e familiares jogam conversa fora, ele ouve e balança a cabeça.
Talvez só mesmo a sua paixão pelo Internacional, chamado pelo escritor de Colorado, o apelido do time, faça Verissimo se soltar um pouco mais.
Há uma cena em que ele analisa a performance da equipe, com um entusiasmo que nenhum outro assunto parece merecer.
“Se eu fosse supersticioso, diria que tem sapo enterrado ali”, brinca Verissimo, ao tentar explicar a má fase do Colorado no campeonato.