O título já adianta o que esperar de “Kobra Auto Retrato”, uma janela para a vida do artista paulistano responsável por mais de 3 mil murais espalhados por 35 países. O documentário mostra quem é Eduardo Kobra e os obstáculos que ele ultrapassou para se tornar um dos muralistas mais influentes da atualidade, alegrando a paisagem urbana com reflexões sobre o nosso tempo.

“Não gosto de me meter em assunto que não conheço ou de me envolver com temas midiáticos, por mais relevantes que sejam”, conta Kobra, de 47 anos, ao NeoFeed. “O que mais me motiva são as questões históricas e sociais, muitas vezes ligadas à violência e ao racismo, que são pertinentes à minha trajetória. É uma espécie de desabafo.”

O próprio Kobra conta a sua história no filme que chega ao circuito nacional em 17 de novembro e é uma das atrações desta 46ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que segue até o dia 3. É dele também a arte do pôster da Mostra, com a imagem de garota tocando a lua extraída do clássico curta-metragem “Viagem à Lua”, do francês Georges Méliès (1902).

O vestido da menina traz as formas geométricas coloridas e vibrantes (uma marca registrada de Kobra), contrastando com a cidade de São Paulo, em preto e branco, ao fundo. “O cinema permeia a minha vida, já que aprendi muito com os documentários sobre arte. As minhas madrugadas de insônia são menos tristes graças aos filmes que vejo”, diz ele.

Aqui os problemas como depressão, insônia e dependência de medicamentos controlados são abordados com a mesma naturalidade que a arte de Kobra, que é autodidata e expressa em seus murais as suas maiores preocupações. Seja com o meio ambiente, a desigualdade social, a violência, o racismo ou as guerras.

Madre Teresa e Gandhi na obra Tolerância, Nova York (2018)

A linha do tempo do filme começa na adolescência de Kobra, como pichador na periferia de São Paulo. Foi um período conturbado, quando seus amigos foram presos ou mortos por enveredarem pelo mundo das drogas ou da criminalidade, o que acabou influenciando o seu olhar como artista.

“Sou privilegiado por ter nascido em comunidade carente, no bairro do Campo Limpo”, afirma Kobra, filho de um tapeceiro e de uma dona de casa. “Tive inúmeras dificuldades, mas São Paulo foi a plataforma para o meu trabalho. A partir daí, consegui que a minha arte fosse vista e passei a ser convidado para pintar no mundo todo.’’

No mês passado, a pedido da ONU, Kobra inaugurou um mural na fachada da sua sede, em Nova York, com a imagem de um pai entregando uma miniatura da Terra, esverdeada, à filha. Além de se tratar de algo inédito na ONU, o trabalho colocou o artista ao lado de brasileiros ilustres que fizeram contribuições no local. Como o pintor Cândido Portinari e o arquiteto Oscar Niemeyer.

O projeto do complexo de edifícios, finalizado em 1952, uniu as propostas de Niemeyer e do francês Le Corbusier. Já Portinari realizou os painéis “Guerra e Paz”, pintados entre 1952 e 1956, com os quais o governo brasileiro presenteou a ONU.

Dentro de seu projeto Olhares da Paz, Kobra retratou Anne Frank, em Amsterdã (2016)

“Surreal é a palavra mais compatível com a experiência. Como a ONU tem muita compatibilidade comigo, em termos de mensagem, argumentação e defesa, a associação surgiu de forma muito orgânica”, diz o artista, que terá seu documentário exibido também em Nova York.

“Kobra Auto Retrato” foi selecionado para a 13ª edição do DOC NYC, agendada para o período de 9 a 17 de novembro. “O percurso do filme é um espelho da trajetória profissional do artista”, afirma Lina Chamie, diretora do documentário. “Kobra, que começou pichando as ruas em São Paulo, tem hoje mais de 30 murais em Nova York, cidade que ele diz ser uma influência em seu trabalho”, completa ela.

O que determina o sucesso de Kobra no mundo todo é a reflexão que a sua arte propõe, na visão de Chamie. “Sua estética e seu estilo são muito fortes, sempre com cores vivas. Mas o que realmente faz a ponte, tocando as pessoas, é a mensagem de paz, de defesa do meio ambiente, contra as armas e contra o racismo. Isso é muito verdadeiro nele”, diz a cineasta.

“Nunca pintei por status, fama ou dinheiro. O dinheiro não tem o poder nem de me parar nem de me mover. Sou movido pela paixão”, conta o artista, com telas de valores muito variados. O preço depende do tamanho da obra, da fase do artista e do tema, entre outros fatores.

O mural de 12 metros de altura por 20 metros de largura pintado no mármore, em Carrara, na Itália (2017)

No ano passado, Kobra teve a obra "Respirar" (um cilindro de oxigênio com árvore dentro)leiloada por R$ 700 mil no Brasil. O valor arrecadado foi usado para a instalação de usinas de oxigênio em cidades do Amazonas, para ajudar os hospitais locais durante a pandemia.

E como Kobra escolhe as suas eventuais associações com marcas, como a Nespresso? Em abril deste ano, ele pintou o mural “Colheita”, em prédio de Pinheiros, em São Paulo, fazendo uma homenagem à cadeia do café.

“Sou muito criterioso. Recebo convites de marcas do mundo inteiro, e não é de agora”, afirma, lembrando que recusou a grande maioria nos últimos 10 anos. “Só faço as associações legítimas, que respeitam as minhas mensagens e a minha estética. As marcas são um caminho quando quero que um mural seja restaurado ou quero viabilizar um projeto social.”

Os R$700 mil arrecadados em leilão com a obra "Respirar" foram destinados a instalação de usinas de oxigênio no Amazonas, durante a pandemia

Kobra acaba de realizar uma exposição relâmpago (de apenas um dia), na Eden Gallery em Londres, com cerca de 40 telas inéditas. “Aproveitei para fazer um mural com imagem da rainha Elizabeth II ainda jovem, em Camden Town”, diz ele, referindo-se ao bairro londrino com expressiva arte de rua, que já contava com a sua marca.

Em 2011, Kobra pintou em Camden Town um mural com uma locomotiva na tradicional casa de shows Roundhouse, em referência ao passado do local, usado para manobras e manutenção para trens. O mesmo muro já tinha exibido um trabalho em estêncil do polêmico grafiteiro Banksy, que acabou vandalizado pelos moradores.