Desde os anos 1920, o pintor brasileiro Emiliano Di Cavalcanti (1897-1986) já conhecia o Muralismo Mexicano, movimento artístico surgido no México, no início do século 20, que teve entre seus expoentes nomes como Diego Rivera e José Clemente Orozco.
Foi somente em 1949, no entanto, que o artista teve seu primeiro encontro com seus pares mexicanos, como Rivera, cujas obras viriam a influenciar suas experiências posteriores com murais, como o trabalho “As mulatas” (1962).
Pertencente ao acervo do Palácio do Planalto, o painel (de 119 cm de altura por 351 cm de largura) é considerado a principal peça do Salão Nobre do prédio, quiçá de toda a sua coleção, e foi danificado durante os ataques terroristas a Brasília no domingo, 8 de janeiro. Ele é estimado em até R$ 20 milhões.
Num primeiro momento, Rogério Carvalho, diretor de Curadoria dos Palácios Presidenciais, explicou ao NeoFeed que os sete rasgos encontrados no painel de Di Cavalcanti deveriam ter sido feitos com arremessos de pedras portuguesas tiradas do calçamento da Praça dos Três Poderes pelos golpistas.
Os danos, como se revelou pelas imagens das câmeras de segurança posteriormente, foram feitos com objeto cortante. De acordo com Carvalho, as perfurações têm cerca de 7cm de altura por até 4cm de largura.
Houve também uma confusão acerca das origens do comissionamento da obra, ou seja, de como se deu o processo de sua encomenda (com as dimensões do espaço que viria a ocupar e, por vezes, com temática determinada).
Primeiramente, foi apontado que ela estava entre os trabalhos encomendados pelo arquiteto Oscar Niemeyer, que havia projetado os principais prédios públicos para a então a nova capital do país, inaugurada em abril de 1960, e fora também responsável pela decoração dos palácios.
Niemeyer havia, sim, comissionado Di Cavalcanti para outras duas obras: uma representação dos passos da Paixão de Cristo, para a Catedral Metropolitana, e “Músicos”, tapeçaria recentemente encontrada desbotada no Palácio da Alvorada, por ter sido indevidamente exposta ao sol durante o governo Bolsonaro.
Di Cavalcanti também é autor de um painel exposto no Congresso, um pedido de Juscelino Kubitschek, conhecido como “Candangos”, em homenagem aos trabalhadores que ergueram a capital. “As mulatas”, no entanto, não estava entre essas encomendas feitas ao artista modernista.
Elisabeth Di Cavalcanti, filha do pintor, contou ao NeoFeed que o trabalho foi originalmente comissionado pela Companhia Nacional de Navegação Costeira, para ornar a sala de refeições de um de seus navios, o Princesa Leopoldina, da linha de cruzeiros Cisnes Brancos.
A Costeira, empresa criada pela família de Henrique Lage, dono da mansão que viria futuramente abrigar a Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, foi incorporada à estatal Lloyd Brasileiro nos anos 1960. Em 1991, por determinação do então presidente Fernando Collor, “As mulatas” foi incorporado ao acervo do Planalto, vinda do patrimônio do Lloyd, à época em extinção.
Vale lembrar que o painel havia sido retirado de seu local original de exposição, no terceiro andar do Palácio, por Michel Temer, logo após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, e transferido para o gabinete presidencial.
De acordo com a atual gestão, a mudança contrariou as diretrizes da curadoria do acervo, estabelecidas ainda nos anos de governo Lula, segundo as quais toda obra de grande valor artístico ou histórico deveria ser exibida em espaço público nos palácios. Bolsonaro manteve a obra no gabinete por algumas semanas, mas devolveu ao seu local de origem em 2019.
Outra informação não de todo precisa é o próprio nome da obra: “As mulatas”. Segundo Elisabeth, seu pai “não dava nomes aos quadros”. Fato confirmado por Denise Mattar, curadora de exposições sobre o artista desde os anos 1990 e autora, entre outros, dos livros “Di Cavalcanti: Um perfeito carioca” (2006) e "Di Cavalcanti: Conquistador de lirismos" (2016).
Ao longo dos anos, alguns títulos acabaram sendo adotados para fins de estudos de pesquisadores da obra do artista. Mas, Denise ressalta, “As mulatas” marca um ponto de inflexão importante na carreira de Di Cavalcanti.
“Desde o início de sua carreira, os trabalhos de Di Cavalcanti já possuíam características de murais. Tanto que ele faz os painéis [‘Samba’ e ‘Carnaval’] do Teatro João Caetano, nos anos 1930, no Rio. E outras pinturas de grandes dimensões, como ‘Devaneio’ [1927] e ‘Seresta’ [1930], que são bastante conhecidas”, conta a curadora.
Porém, prossegue Denise, a partir do fim da década de 1950, Di Cavalcanti começa a ter muitas demandas por trabalhos do gênero, “porque, com a criação da arquitetura modernista no Brasil, surgem os pedidos dos próprios arquitetos do período para a ocupação de grandes espaços vazios”, diz ela. “E não somente em Brasília, ele faz também no Rio de Janeiro e na Bahia, por exemplo. Essa fase se estende mais ou menos até o fim dos anos 1960, o período áureo da arquitetura modernista no Brasil”.
De acordo com a curadora, essa experiência com o muralismo acabou ecoando em suas pinturas de cavalete. Como Di Cavalcanti passara a trabalhar com espaços muitos grandes, “ele começou a criar gestos mais largos, vistos nos grafismos, muito ondulantes e que preenchiam as superfícies de trabalhos como “Nu” e “A menina com o cachorro”, de 1954, e “A espera”, de 1960.
Ainda do ponto de vista da produção artística de Di Cavalcanti, o marchand Luiz Danielian – que entre setembro e outubro do ano passado organizou a exposição “Di Cavalcanti – 125 Anos”, na Danielian Galeria, no Rio – destaca que “As mulatas”, junto às outras obras danificadas, de Bruno Giorgi e Alfredo Ceschiatti, “compunham o berço do modernismo brasileiro”. “É uma obra-prima. E Di Cavalcanti foi um dos primeiros artistas do país a representar o povo brasileiro, deixando de seguir as representações eruditas de então”, afirma.
Sobre o ataque do último domingo, Elisabeth salienta que “é sempre impactante você ver uma obra naquele estado, quase destruída. Digo quase, porque ela pode sofrer uma restauração com sucesso”. Denise diz que não consegue “compreender o motivo por que as pessoas se voltam contra as 'pobres' das obras de arte. Talvez porque elas sejam indefesas”.
Já Danielian afirma que vê uma simbologia no que aconteceu ao painel: “Essas pessoas ignorantes atacaram justamente uma coisa que eles pensam estar defendendo”. De acordo com o Palácio do Planalto, ainda não há estimativa de tempo ou custos para a restauração de “As mulatas”. Ao longo da semana, o Ministério da Cultura aventou a possibilidade de se criar um memorial dos atos golpistas.
Em uma rede social, a jornalista Rosa Freire d’Aguiar, que certa vez entrevistou Di Cavalcanti para a revista “Manchete”, escreveu que, “falando com amigos, [concluiu que] talvez fosse melhor deixar a tela furada pelos fascistas”, como um “testemunho instrutivo”, como os franceses fizeram após a libertação de Paris, em 1944, ao manter nas paredes de seus edifícios as marcas dos tiroteios com os nazistas.
Já Elisabeth defende que, como testemunho de vandalismo, para gerações futuras, hoje em dia temos condições de fazer fotos “em altíssima resolução, então pode-se guardar esse registro como uma reprodução fotográfica. Sem o triste recurso de não restaurar a obra”, conclui.