TROMSO (Noruega) - “Eu nunca vi atrocidade alguma”, declara Leni Riefenstahl, mais conhecida como a cineasta de Adolf Hitler, no último documentário sobre a mulher responsável pelos filmes de propaganda nazista.

Embora ela tenha negado a vida inteira o seu conhecimento sobre os crimes do Terceiro Reich, a produção sugere o contrário: Riefenstahl teria tido participação no massacre de Konskie, na Polônia, no início da Segunda Guerra Mundial.

“Riefenstahl” foi uma das atrações do recém-encerrado 35° Festival Internacional de Cinema de Tromso, conhecido como TIFF. Ao passar a limpo a trajetória profissional da cineasta berlinense, morta aos 101 anos, em 2003, a produção teve sessões lotadas na cidade norueguesa, localizada acima do Círculo Polar Ártico.

Independentemente de sua contribuição para a estratégia de dominação nazista, Riefenstahl foi uma pioneira em técnicas cinematográficas usadas até hoje, com feitos reconhecidos por nomes de prestígio no setor, como Luis Buñuel e Steven Spielberg. Entre suas principais inovações, estão a captação de imagens com o uso de trilhos e de gruas e o registro de uma cena em diferentes perspectivas, com câmeras simultâneas.

O que moveu Andres Veiel a dirigir o novo documentário e, consequentemente, reacender a polêmica em torno da compatriota, a diretora “preferida’’ de Hitler, foi o seu acesso a um material de arquivo pessoal de Riefenstahl. Veiel foi o primeiro diretor a explorar o espólio que os herdeiros de Riefenstahl doaram, em 2016, à Fundação do Patrimônio Cultural Prussiano, composto de mais de 700 caixas.

Em troca de uma revisão e de uma análise do material, Veiel e a produtora Sandra Maischberger tiveram a permissão para usar o que quisessem em um documentário. Eles tiveram à disposição roteiros e clipes de filmes, cartas, anotações, fotografias, gravações domésticas em Super-8, fitas cassete com gravações telefônicas, extratos inéditos do livro de memórias de Riefenstahl (publicado em 1987) e trechos de entrevistas para TV concedidas pela cineasta ao longo dos anos.

Ainda sem data de lançamento definida no Brasil, o documentário destaca uma carta de 1952 que traz detalhes de uma suposta participação da cineasta no massacre de Konskie, cidade polonesa invadida em 1939.

A correspondência era de um subordinado do oficial nazista Peter Jacob, ex-marido de Riefenstahl, relatando ao seu superior um evento no qual a diretora teria incitado (ainda que involuntariamente) o assassinato de judeus. Na época, Riefenstahl estava acompanhando a passagem de Hitler por Konskie, com a missão de registrar a “vitória nazista” sobre a Polônia.

Segundo a carta, ela teria pedido para que judeus (trabalhando em uma vala) fossem removidos do local de filmagem por estarem atrapalhando a cena com soldados alemães. O seu pedido teria resultado em uma ordem de “livrem-se dos judeus!”, seguida de disparos e, consequentemente, de mortes.

Só esta carta já contradiz as décadas de negação de Riefenstahl, que sempre insistiu não ter tido noção do que realmente acontecia enquanto ela trabalhava para Hitler. Acusada inicialmente por participação nos crimes de guerra, ela foi inocentada nos julgamentos conduzidos em 1949.

Leni Riefenstahl adotou técnicas de filmagem que foram seguidas por muitos diretores (Divulgação/TIFF)

Cineasta de Berlim morreu em 2003, aos 101 anos (Divulgação/TIFF)

Materiais guardados pela família foram entregues ao diretor Andres Veiel (Divulgação/TIFF)

Comícios do Partido Nazista

Mas seu nome sempre instigou polêmica, até porque acusações continuaram sendo feitas. Em 1952, por exemplo, houve testemunhos de que a cineasta teria entrado no escritório de um general nazista, em setembro de 1939, após ter presenciado o assassinato de 22 judeus. Na ocasião, ela teria dito que não conseguiria “dar continuidade ao trabalho em meio às atrocidades”.

Riefenstahl, por sua vez, costumava se defender, alegando ter se concentrado no aspecto artístico de seu trabalho, sem qualquer afiliação ideológica ou política. Sua associação com Hitler teve início em 1933, ao documentar comícios do Partido Nazista em Nuremberg, em “A Vitória da Fé”.

No ano seguinte, a diretora se superou, ao cobrir novamente o congresso nazista realizado em Nuremberg, em “O Trunfo da Vontade”, um filme que entrou para a história como um dos mais poderosos exemplos de propaganda política no cinema. Principalmente pela abordagem visceral de Riefenstahl, ao exaltar o poder e o esplendor que o partido pregava e enaltecer Hitler como uma figura heroica.

“Eu era inexperiente naquela época. Para mim, a política sempre foi o oposto de tudo o que me interessava. Sempre fui fascinada por artes, o que nos permite explorar algo em um nível mais profundo”, reforça a diretora, em trecho de entrevista reproduzido em “Riefenstahl”. “E se você vive a sua vida ardente, intensa e apaixonadamente, como é o meu caso, não há lugar para questões do mundo real."

Em “Olympia”, documentário rodado em 1936 sobre as Olimpíadas de Berlim, a diretora ainda apresentou uma ode ao corpo dos atletas, o que inevitavelmente funcionava como referência à superioridade ariana. Embora o filme não deixe de mostrar as conquistas do velocista Jesse Owens, um americano negro, o foco caiu sobre as vitórias dos alemães, servindo também de glorificação da pureza racial.

“Em todos os filmes que fiz, sempre fui cativada pela beleza dos sujeitos retratados”, afirmava Riefenstahl. A maior parte dos clipes da diretora, aliás, traz a própria se esforçando para limpar a sua reputação. “Naquela época, 90% da população estava encantada com Hitler”, tenta ela, mais uma vez, embora seja impossível para o espectador não questionar a sua cumplicidade com o regime responsável pela morte de milhões.

E “Riefenstahl” colabora muito nesse sentido, colocando um pouco mais de lenha na fogueira.