Um encontro de titãs que quase não aconteceu. É assim que Roberto de Oliveira, o idealizador do álbum “Elis & Tom”, de 1974, define o registro musical histórico com Elis Regina (1945-1982), a cantora mais influente do Brasil na época, e Tom Jobim (1927-1994), o compositor ícone da Bossa Nova.

“No começo, eu não acreditava que conseguiria reunir os dois em um estúdio. E depois foram muitos os conflitos até o disco sair”, diz Oliveira, ao NeoFeed, às vésperas de revelar em documentário os bastidores daquela gravação. Com um dos mais harmoniosos duetos já vistos, “Elis & Tom” é sempre apontado como um melhores discos da música brasileira.

Usando imagens de arquivo até então inéditas, Oliveira assina “Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você”, para relembrar a produção do clássico, quase 50 anos depois. “Só nos últimos tempos é que eu tive coragem de mexer no material que guardava. Sabia que o tempo faria bem para o filme, por me dar uma visão mais distanciada”, afirma Oliveira, que foi o empresário de Elis.

Há um pouco de romance e de drama no “making of” gravado entre fevereiro e março de 1974, no MGM Studios. Desde a emoção do primeiro abraço entre os gigantes da música, no aeroporto de Los Angeles, até o clima de tensão no estúdio.

Ao longo do processo, houve várias discórdias artísticas. Principalmente quanto à participação do arranjador e pianista Cesar Camargo Mariano. Como Jobim não queria Mariano, o então marido de Elis, cuidando dos arranjos, o compositor o diminuía no estúdio, desprezando as suas ideias inicialmente.

Uma das atrações desta 24ª edição Festival do Rio, “Elis & Tom, Só Tinha de Ser Com Você” faz a sua primeira exibição nesta segunda, dentro da mostra Première Brasil: Retratos – com reapresentações na terça e na quarta. Há também projeções previstas na Mostra de Cinema de São Paulo, com abertura no dia 20.

Como Jobim não queria Mariano, o então marido de Elis, cuidando dos arranjos, o compositor o diminuía no estúdio, desprezando as suas ideias inicialmente

A ideia do disco partiu de Oliveira, que ainda não era empresário ao conhecer Elis. Ele atuava como produtor musical na TV e cuidava do chamado “circuito universitário”. O projeto consistia em levar o artista ao interior do Brasil para se apresentar nas universidades. Diante da censura na época, com a ditadura militar, esse espaço foi revolucionário, dando liberdade para o artista cantar para multidões.

“Ao convidar Elis para o circuito, ela se entusiasmou e me chamou para ser seu empresário”, conta Oliveira, lembrando que Elis atravessava um momento complicado na carreira. “Como ela tinha cantado nas Olimpíadas do Exército (em 1972), era alvo de muita crítica no meio acadêmico, cultural e artístico.’’

A solução foi tentar reposicionar Elis como cantora, buscando uma imagem de prestígio. Oliveira aproveitou que a sua gravadora queria fazer um disco comemorativo, de dez anos, para propor o dueto com Jobim, imaginando que a gravação se tornaria um “evento”. “Enquanto Elis só era conhecida no Brasil, Tom vivia nos EUA e já tinha projeção internacional. Ele até já tinha gravado com Frank Sinatra.”

Para garantir que Jobim dissesse “sim”, Oliveira buscou parceria em Aloysio de Oliveira, produtor musical veterano que também morava nos EUA e era amigo do compositor. O novo integrante no projeto facilitou a aproximação e ainda ajudou a acalmar os egos – até porque Elis e Jobim não tinham um histórico muito amistoso.

“Havia boatos de que Tom tinha vetado Elis, em 1963, no Rio, para o musical ‘Pobre Menina Rica’, no qual ele era o arranjador”, recorda Oliveira. Ele até inclui no documentário um trecho de entrevista com Jobim, em que o compositor desconversa, ao ser questionado sobre ter descartado Elis para aquele trabalho.

Desse disco ainda saiu "Águas de Março" cantada pelos dois, que se tornou uma faixa referencial da música brasileira

Ainda assim, o encontro musical nos EUA foi visto com bons olhos por ambos. A cantora entendeu que precisava daquela associação com Jobim. E o compositor encarou a proposta com interesse, por estar há tempos longe do Brasil e querer se reaproximar culturalmente do país.

Mas tudo quase desmoronou, no período de 18 dias em que Jobim se desentendeu com Mariano quanto aos arranjos musicais. Prestes a desistir, Elis chegou a fazer as malas para voltar ao Brasil. “De tão tensa, Elis roía todas as unhas”, conta Oliveira.

Como o documentário costura as imagens de arquivo com depoimentos atuais, Mariano diz que foi um processo “terrível” ter que se adaptar ao que Jobim queria. Até porque o compositor deixava claro que queria o alemão Claus Ogerman, seu amigo de longa data, nos arranjos. Mas este já estava comprometido com outro projeto.

Desde o início, Jobim implicou com o piano elétrico de Mariano, por defender a Bossa Nova com o instrumento tradicional. “Quando eu disse que usaria o piano de pau e o elétrico no estúdio, Tom gritou: ‘Aloysio, você ouviu isso? Aquele piano maravilhoso virou piano de pau’. Aquilo foi uma facada no meu peito”, recorda Mariano.

No final, Mariano precisou se ajustar, mas conseguiu dar a sua contribuição ao projeto, já que Jobim acabou permitindo certos arranjos elétricos. “Inicialmente, era um disco da Elis, com Tom como convidado. Mas seria impossível fazer a gravação sem que o universo jobiniano tomasse conta da cena. Quando Elis e César perceberam isso, tudo deu certo”, lembra Oliveira.

E o resultado foi um álbum histórico, um dos maiores sucessos da discografia brasileira. Dele, Elis saiu com uma interpretação mais refinada e menos explosiva, enquanto Jobim, mais erudito, deixou entrar a modernidade de Elis na sua música.

“Desse disco ainda saiu ‘Águas de Março’ cantada pelos dois, que se tornou uma faixa referencial da música brasileira, substituindo ‘Aquarela do Brasil’, que até então era a canção-símbolo do país”, diz Oliveira, sem divulgar o número total de cópias vendidas de “Elis & Tom”. “Só sei que foi muito. Afinal, o álbum foi vendido no mundo todo.”