Quem frequenta cafeterias da terceira onda, aquelas onde só os cafés especiais têm permissão para entrar, pode estar bebendo café canéfora sem saber. A espécie, há muito considerada o “patinho feio” do setor, sempre associada a baixa qualidade, deu a volta por cima e começa a disputar o protagonismo com o popular arábica.
A redenção do canéfora começou a ser esboçada cerca de 18 anos atrás, pela família Venturim, do Espírito Santo, que mantém lavoura de 90 hectares da variedade conilon. Em 2007, os irmãos Lucas e Isaac Venturim assumiram a propriedade dos avós e, como não tinham em quem se espelhar, começaram a imitar os protocolos de qualidade dos cafeicultores de arábica. Deu certo.
Em 2023, a dupla conseguiu um feito inédito — um lote do café Venturim conquistou 90 pontos pelo método de avaliação da Specialty Coffee Association e foi o primeiro canéfora a conquistar a certificação da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA). Sai da fazenda deles o café que a rede Santo Grão batizou como “0% Arábica”, a R$ 45, o pacote de 200 gramas.
“Quem bebe um café canéfora de qualidade sente uma certa familiaridade. Ele tem uma característica olfativa facilmente reconhecível”, explica Natália Braga, instrutora do Santo Grão, em conversa com o NeoFeed.
A tal familiaridade a que a especialista se refere tem a ver com o sensorial típico dos cafés canéfora. Quando cultivados e beneficiados com zelo e torrados sem excesso, os grãos resultam em bebidas intensas, com mais corpo e baixa acidez. Ao contrário do arábica especial, as notas frutadas não sobressaem. Para o brasileiro que cresceu bebendo “café forte”, cai como uma luva.
Fundador da Catarina Coffee & Love, microtorrefadora paulistana que funciona como cafeteria nos fins de semana, Henrique Ortiz tem visto a mesma cena se repetir. “Entre aquela parcela do público que chama o café de torra clarinha de ‘chafé’, a adesão é imediata. Gostam do seu perfil rústico, amadeirado”, explica ele, ao NeoFeed.
Apesar disso, Ortiz não alardeia a diferença. No cardápio da cafeteria moderninha, cujo balcão foi rebatizado de bar de coados, ele estampa a região de origem do café e o nome do produtor, mas não especifica se é arábica ou canéfora. Dessa forma, acredita, mais gente se dispõe a degustar.
Também não há diferença de preço. Espressos custam R$ 9 e coados, R$ 16, tanto faz se for um arábica ou um canéfora. Dessa forma, ele evita que se crie uma hierarquia entre os dois.
“Entre profissionais, como baristas e donos de cafeterias, há muita resistência. Se você avisa que é um canéfora, já torcem o nariz, então prefiro não falar antes. Só depois que provam e comprovam que é gostoso, revelo que era um canéfora e vou contanto a história.”
Sacas valiosas
O preconceito tem lá sua razão de ser. Desde que o Brasil foi apresentado aos cafés especiais, a espécie arábica reinou sozinha no segmento e virou uma espécie de atestado de qualidade. Enquanto isso, o canéfora continuou sendo uma commodity. Colhido e beneficiado sem muito critério, era inteiramente direcionado à grande indústria, principalmente de cafés solúveis.
Faz muito pouco tempo que a chavinha foi virada e, para ser aceito como café especial, o canéfora vai depender de uma campanha tão bem sucedida quanto a do arábica — que, por enquanto, continua limitada a alguns poucos entusiastas.
Mauricio Pagani, mestre de torra e fundador da cafeteria paulistana J. Café, é um deles. Aos clientes mais novidadeiros, que batem ponto com frequência atrás de lançamentos, Pagani oferece três opções de cafés canéfora.
Dois deles, um cereja descascado e outro natural fermentado, são conilons vindos da fazenda Venturim. Se extraídos no Hario V60, o coador japonês sensação no universo dos café especiais, custam R$ 13, a xícara. Se preparados na prensa francesa, R$ 16. O terceiro é um robusta amazônico do Sítio Recanto do Ipês, fermentado por 15 dias. Extraído exclusivamente no V60, sai por R$ 19 a xícara.
“Faço questão de explicar muito bem antes. Tem gente que aceita provar, tem gente que não. Depois que provam, é ame-o ou deixe-o. Ninguém fica indiferente”, diz o torrefador, em entrevista ao NeoFeed.
Duas regiões produtoras têm se destacado na produção de cafés canéfora de alta qualidade: o Espírito Santo, onde os cafeicultores apostam na variedade conilon, e Rondônia, onde os produtores de robusta obtiveram o registro de Denominação de Origem Matas de Rondônia, no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
Ao contrário da espécie arábica, que depende do frio e prefere grandes altitudes, as duas variedades de canéfora não são tão melindrosas. Resistem bem ao calor, podem ser cultivados em terrenos no nível do mar e aguentam até a fornalha úmida da região amazônica.
O preço da saca também anda nas alturas. O Vietnã, maior produtor global de café canéfora, tem tido quebras sucessivas nas safras, em função das mudanças climáticas, assim como o Brasil, segundo no ranking em termos de volume.
Em 5 de setembro de 2024, deu-se um fato raro: a saca de canéfora chegou a custar mais do que a de arábica, alcançando R$ 1.421, contra R$ 1.394 do arábica. A balança já se inverteu, mas os preços das duas espécies, que sempre foram bem distantes, se aproximaram — hoje, o arábica custa R$ 2.542 a saca e o canéfora, R$ 1.979. E nada indica um cenário muito diferente em um curto prazo.
Mais cafeína
Espécie de embaixador informal do canéfora brasileiro mundo afora, Lucas Venturim conta ao NeoFeed que novos mercados estão descobrindo os encantos do “ex-patinho feio”. Em abril de 2024, ele participou da Specialty Coffee Expo, em Chicago, considerada uma das maiores feiras internacionais do setor, e saiu de lá animado.
“Fui convidado para falar sobre o canéfora fino. Fizemos degustações e a aceitação entre os norte-americanos foi excepcional. As microtorrefações e cafeterias estão curiosas, mas já com um certo atraso em relação aos europeus, que já usam conilons e robustas há algum tempo.”
Uma particularidade do canéfora pode ajudar a espécie a conquistar mais fãs — a concentração até quatro vezes maior de cafeína. É o tipo de produto que não atrai só quem precisa de café potente para acordar no tranco. Estudantes e profissionais em busca de foco e energia, assim como atletas de alto desempenho, são os principais consumidores da marca GetUp Coffee, que pertence à própria família Venturim.
Na loja online, a marca anuncia que o café contém 220% mais cafeína. Só nos dois primeiros meses de 2025, as vendas aumentaram 51,9%, comparadas ao mesmo período de 2024. Com um marketing desse, o canéfora tem tudo para ir longe.