Os olhos lacrimejam, o nariz escorre, o corpo sua e o rosto enrubesce. Ganha quem comer tudo — mais rápido e a seco, sem consumir nada para aliviar o fogo que incendeia a boca. Muitos não aguentam e abandonam a competição. Os mais valentes exibem orgulhosos os pratos raspados.
Nos últimos meses, gente de todos os cantos do mundo, inclusive do Brasil, vem se lançando no desafio dos noodles Buldak Ramen. A hashtag #spicynoodles soma 294 milhões de visualizações no TikTok. Só o filminho da rapper americana Cardi B preparando a comida amealhou 4,4 milhões de curtidas.
Lançado pela companhia sul-coreana Samyang Roundsquare, o macarrão instantâneo mega-hiper-ultra-picante é anunciado como o mais quente do mundo. Pois, foi essa picância toda que fez com que a Dinamarca banisse do país três sabores dos noodles Buldak Ramen.
Normalmente, o recall de alimentos acontece por contaminação microbiológica ou química, presença de alergênicos não declarados, problemas de rotulagem, defeitos de fabricação, baixa qualidade... mas de uma interdição porque o produto é apimentado demais nunca se ouvira falar.
“O Instituto Nacional de Alimentos avalia que os níveis de capsaicina total em uma única embalagem do ‘3xSpicy & Hot Chicken’, ‘2xSpicy & Hot Chicken’ e ‘Hot Chicken Stew’ são tão altos que oferecem risco de intoxicação aguda”, lê-se no comunicado oficial da proibição. Capsaicina é o composto ativo da pimenta chili, a popular malagueta.
À notícia do recolhimento, seguiu-se uma grita nas redes sociais. Todos zombam das autoridades sanitárias dinamarquesas — com um paladar tão sensível, elas não devem suportar nem o cardamomo, caçoam nas postagens do TikTok e do Instagram, em referência à especiaria originária da Índia e famosa por seu sabor adocicado.
Como a maioria dos fenômenos que, de tempos em tempos, dominam a internet, não se sabe ao certo como começou, mas o mundo parece ter se lançado no desafio dos noodles sul-coreano. A corrida pelo macarrão foi tão desenfreada que no mercado americano o produto chegou a faltar.
Até a proibição na Dinamarca, os executivos da Samyang estavam rindo de orelha a orelha. Fundada em 1961, em Seul, como Samyang Foods, a companhia viu o valor de suas ações subir 34% em apenas um mês, entre 19 de maio e 19 de junho - a companhia vale US$ 3,8 bilhões.
De dona de casa a CEO
O primeiro Buldak Ramen foi lançado em 2012, como o macarrão instantâneo mais apimentado do mundo — em coreano, seu nome significa “frango de fogo”. A dona da “receita” é Kim Jung-soo. E sua história é tão picante quanto os noodles.
Formada em serviço social, ela era uma dona de casa, com dois filhos pequenos, quando, no fim dos anos 1990, foi convidada pelo sogro Chu Joong-yoon, fundador da Samyang, para ingressar na empresa. O grupo estava à beira da falência e Kim, sem experiência corporativa, foi liderar o departamento de vendas.
“Havia apenas desespero”, contou, em entrevista ao jornal americano The Wall Street Journal, publicada em janeiro deste ano. Aos poucos, as finanças foram estabilizando e, em 2006, ela passou a chefiar o departamento de criação de novos produtos.
Quatro anos depois, durante um passeio de fim de semana com a filha pelo centro de Seul, Kim ficou impressionada com o tamanho de uma fila em frente a um restaurante de arroz frito, famoso por seus pratos ultrapicantes. “Temos de fazer uma versão ramen disso”, pensou.
Cerca de 1,2 mil frangos e duas toneladas de molho depois, ela e sua equipe finalmente chegaram à primeira versão do Buldak Ramen. No início, nem Kim conseguia comer os noodles, de tão apimentado. Hoje, depois de tanto tempo insistindo, o macarrão fica “cada vez mais saboroso”.
Logo na estreia, o Buldak Ramen viralizou no YouTube — na época ainda não havia nem Instagram nem TikTok. Na ocasião, o influenciador Korean Englishman lançou o desafio The Fire Noodle Challenge. E o noodle virou uma febre.
Em 2020, Kim e o marido, então presidente da Samyang, foram condenados pelo desvio de US$ 3,8 milhões da empresa. Ele foi condenado a três anos de prisão. Kim conseguiu suspensão de pena e, em agosto de 2023, recebeu o perdão presidencial, o que limpou seu nome perante a Justiça. No mês seguinte, foi nomeada CEO da companhia, agora rebatizada Samyang Roundsquare.
Baratos e fáceis de preparar
Hoje, aos 59 anos, Kim está empenhada em expandir ainda mais a presença da marca no exterior. Quer brigar de igual para igual com as gigantes japonesas Nissin e Cup Noodles, na disputa por um mercado global de US$ 50 bilhões, segundo o Euromonitor International.
Impulsionadas pelo boom na procura por refeições baratas e fáceis de preparar, as vendas de macarrão instantâneo cresceram, nos últimos cinco anos, 52%, no mundo. Considerando a predileção das novas gerações pelos sabores picantes, o futuro soa ardentemente promissor para a Samyang.
Como a executiva conta ao jornal The Korea Herald, seu objetivo é fazer da companhia fundada pelo sogro não apenas uma representante da K-food (a culinária sul-coreana), mas, sobretudo da legítima “K-spicy”.
A empresa recebeu a notícia da proibição do Buldak Ramen na Dinamarca com surpresa. “Planejamos examinar de perto os regulamentos dinamarqueses e responder ao recall de acordo”, afirma o porta-voz da Samyang ao Korea Times.
O recall de um alimento tende a ser devastador para seu fabricante. Apenas em custos diretos, as perdas podem chegar a US$ 10 milhões, nos cálculos da FDA, a agência sanitária americana. Se considerados os danos à reputação da marca, os prejuízos explodem.
Com consumidores cada vez mais exigentes e o aperfeiçoamento das tecnologias de segurança alimentar, a retirada do mercado de produtos alimentícios já lançados torna-se mais e mais frequente.
Só em 2022, a FDA, registrou um aumento de 700% na quantidade de unidades recolhidas, em comparação ao ano anterior. No Brasil, entre 2022 e 2023, o número de ocorrência quadruplicou, conforme dados da Anvisa.
Gordura, ácido e amido
A proibição dinamarquesa provavelmente não causará grandes problemas a Samyang, avaliam os analistas de mercado.
“Consumir muito tempero pode certamente causar suor, náusea, vômito e alguns problemas gastrointestinais”, escreve Mark Lorch, professor de Comunicação Científica e Química, da Universidade de Hull, na Inglaterra, no artigo Denmark bans noodles for being too hot — what you need to know about chili heat, publicado na plataforma The Conversation.
E ele conclui: “Mas não existem muitas provas de problemas de saúde graves ou de longo prazo diretamente associados à comida picante, o que leva alguns a se perguntar se as autoridades dinamarquesas não reagiram de forma exagerada.”
A quem se aventurar a experimentar o Buldak Ramen (ou qualquer outra comida apimentada) e a boca incendiar, #ficaadica: beber água só vai piorar a quentura, dê preferência a bebidas e alimentos gordurosos, ácidos ou ricos em amido, como pão e arroz. Boa sorte!