Era 1988, um dos períodos mais duros da epidemia de Aids. Enquanto a comunidade científica ainda buscava uma forma de conter o avanço do vírus HIV, a discriminação e o preconceito grassavam na sociedade.
Naquele ano, 11 artistas de Nova York se juntaram em torno do coletivo Gran Fury. Autodescrito como “um bando de indivíduos unidos pela raiva e dedicados a explorar o poder da arte para acabar com a crise da aids”, o grupo funcionou como uma espécie de “ministério da propaganda não oficial e designers gráficos de guerrilha” da ACT UP.
Sigla em inglês para “Coalizão da Aids para libertar o poder”, a entidade política internacional havia se formado um ano antes para pressionar as agências governamentais e empresas a acelerar a busca por medicamentos anti-HIV. Ao fim e ao cabo, tanto o Gran Fury quanto o ACT UP lutavam pelo fim do estigma em torno da doença.
Com o cartaz With 42,000 Dead Art Is Not Enough (“Com 42 mil mortos, arte não é o bastante”, em tradução livre), o Gran Fury convocou a sociedade nova-iorquina para um de seus primeiros eventos, realizado na The Kitchen, uma instituição artística experimental, no bairro de Chelsea.
Arte não é o bastante é também o título da exposição inaugural da programação de 2024 do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), cujo foco é a diversidade sexual e de gênero.
A ser aberta em 23 de fevereiro, a mostra se debruça sobre o trabalho do coletivo de Nova York. Como conta André Mesquita, curador da exposição, em conversa com o NeoFeed, o Gran Fury é um marco fundamental para as práticas do ativismo artístico.
“A proposta do Gran Fury também era confrontar o espectro político durante o segundo mandato do presidente Ronald Reagan, em que as ações públicas de tratamento de HIV/aids eram mínimas ou nulas”, diz ele.
“O primeiro discurso de Reagan a respeito do assunto foi feito em 1987, sendo que a primeira notificação da doença havia ocorrido em 1981. Esses grupos se formam a partir desse silêncio governamental, criando várias estratégias de ação”, completa.
O grupo produziu uma série de campanhas gráficas, entre panfletos, pôsteres, vídeos e fotografias. Utilizadas nas manifestações ACT UP, questionavam ainda a posição da Igreja quanto aos métodos de prevenção do HIV.
Uma das peças mais emblemáticas é a intitulada Kissing Don’t Kill: Greed and Indifference Do (“Beijar não Mata: Ganância e Indiferença matam”). O cartaz traz a fotografia de três casais de raças, gêneros e orientações sexuais diferentes. Em um ano, o pôster era encontrado em ônibus e plataformas de metrô em Nova York, São Francisco, Chicago e Washington.
Hoje, o cartaz não teria tanto impacto. Mas era o final dos anos 1980 e imagens como aquela causavam desconforto e controvérsia. O Kissing don't Kill ainda desafiou o modo como os portadores do HIV eram retratados àquela época: doentes, esquálidos e moribundos.
Dentro da programação dedicada à diversidade sexual e de gênero, o MASP vai apresentar ainda as exposições Masi Mamani/Bartolina Xixa; Francis Bacon: a beleza da carne; Mário de Andrade: Duas Vidas; Tourmaline; Catherine Opie: O Gênero do Retrato; Lia D Castro – Em Todo Lugar e em Nenhum Lugar; e Ventura Profana e Leonilson: Agora e as Oportunidades.
No segundo semestre de 2024, vale destacar a primeira individual em um museu de Lia D Castro. Artista, intelectual e educadora, ela apresentará mais de 30 pinturas, gravuras, fotografias e desenhos realizados durante programas de sexo pago, com uma clientela composta de homens cisgêneros, heterossexuais, em sua maioria brancos, entre 18 e 25 anos.
Transexual, negra, Lia lança mão da prostituição como “ferramenta de diálogo”. Nesses encontros, a artista discute, com seus clientes, gênero, transfobia e raça, a partir da leitura de autores como Angela Davis, Chinua Achebe, Achille Mbembe, Toni Morrison e Lélia Gonzalez, entre outros. E os retrata em seguida, por meio de técnicas diferentes.
“Em geral temos a mulher falando sobre as questões da mulher, transexuais falando de transexualidade, negros falando de racismo”, pondera Isabella Rjeille, curadora da mostra, ao NeoFeed. “Lia faz com que os rapazes pensem também sobre essas posições, quase que uma etnografia desses grupos, indagando também em que momento eles se perceberam heterossexuais, brancos e cisgêneros."
A série de exposições deste ano, que culmina com Histórias da Diversidade LGBTQIA+, a ser inaugurada em 13 de dezembro, dá prosseguimento ao projeto do MASP de apresentar mostras dedicadas à História, como fez em Histórias da Infância (2016), Histórias da Sexualidade (2017), Histórias Afro-atlânticas (2018), Histórias das Mulheres, Histórias Feministas (2019), Histórias da Dança (2020), Histórias Brasileiras (2022) e Histórias Indígenas (2023).
Todas juntas formam um eixo temático que guia as demais atividades do museu ao longo do ano, das publicações aos programas públicos, com oficinas, palestras e seminários, entre outras atividades. Como define Isabella, “essas Histórias vão se complementando e se complexificando com o passar do tempo”.