Na manhã de quarta-feira, 20 de março, o escritor Ignácio de Loyola Brandão ficou em casa. Preferiu não comparecer ao velório do grande amigo, Pedro Herz, fundador da Livraria Cultura.
No dia anterior, o livreiro havia sido encontrado morto em seu apartamento, no edifício Copan, no centro de São Paulo. Tinha 83 anos e, segundo a família, foi vítima de um ataque cardíaco.
"Nós havíamos nos vistos pela última vez, há mais ou menos seis meses", conta Brandão, em conversa com o NeoFeed.
O escritor não saiu com uma boa impressão do último almoço, em uma churrascaria no Conjunto Nacional, endereço da primeira e principal loja da Livraria Cultura, na avenida Paulista.
"Achei que Pedro estava meio deprê, mas ele nunca admitiria", conta o amigo. Depois daquele encontro, o escritor ainda tentou encontrar Herz algumas vezes. "Marcamos, mas ele desmarcou e depois sumiu”, diz.
A causa do abatimento do empresário era pública.
No fim da vida, assistiu ao declínio do negócio, que ele criou e cultivou muito de perto. Há uma década, a empresa, liderada agora pelo filho, Sergio Herz, vive uma severa crise financeira, com passagens que maculam o passado de sucesso.
O grupo, que chegou a ter 18 livrarias espalhadas pelo Brasil e um catálogo com nove milhões de livros, está em processo de falência desde 2023. A agora única loja, a do Conjunto Nacional, ficou fechada por dez dias, entre junho e julho de 2023.
Só foi reaberta mediante uma liminar concedida pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Em 2020, uma série de denúncias de assédios e irregularidades no cumprimento de leis trabalhistas mancharam a imagem da empresa que, dois anos antes, havia entrado com pedido de recuperação judicial.
Trata-se de um cenário absolutamente oposto à pujança que marcou o período mais longo da história da rede.
Uma casa tomada por livros
Fundada em 1969, "de uma forma modesta", como escreveu o empresário no autobiográfico O livreiro, de 2017, a Livraria Cultura é herdeira da Biblioteca Circulante. O negócio foi criado por Eva, mãe de Herz, em 1947, quando ele tinha apenas 7 anos.
"A Cultura nasceu de uma forma modesta, como já disse, mas dinâmica o suficiente para ir moldando os sonhos e as conquistas de uma família de judeus alemães, imigrantes que vieram para este país literalmente com a roupa do corpo, quando a Europa mergulhava numa longa noite de trevas", lê-se no livro.
Na época, a comunidade judaica que se instalava no Brasil carecia de livros em alemão. Eva, que estava em busca de um complemento para a renda familiar, comprou alguns exemplares de best-sellers e criou um sistema de empréstimo.
A Biblioteca Circulante funcionou, primeiro, na residência da própria família, "um sobrado no bairro dos Jardins, no número 1153 da alameda Lorena".
No início eram apenas dez livros, mas logo o acervo foi ocupando quase todos os cantos do imóvel. Em 1969, a família transferiu o negócio para uma loja do Conjunto Nacional e Pedro se tornou sócio da mãe.
Antes disso, o rapaz que cresceu literalmente sobre os livros – o estoque chegou a ser guardado embaixo de sua cama –, foi passar uma temporada fora do Brasil.
Na Basileia, na Suíça, em meados de 1950, ele trabalhou em uma livraria, frequentou um curso de formação de livreiros e conheceu Otto Frank, o pai de Anne Frank – um dos maiores orgulhos de sua vida.
Depois, em Londres, trabalhou na BBC. E, na década seguinte, de volta ao Brasil, chegou a participar da criação do Guia Quatro Rodas, uma das publicações mais célebres e longevas da Editora Abril.
Raridades, importados e celebridades
À frente do negócio da família, Pedro seguiu o espírito inovador e empreendedor de Eva. "Ele estava sempre fazendo alguma coisa diferente", conta Brandão.
O escritor foi o primeiro a testar a ideia de Pedro: lançamentos de dia inteiros. Brandão chegou a vender mais de 400 exemplares em ocasiões assim.
"Ele disse: ‘Venha e fique aqui do meio-dia à meia-noite”, lembra o escritor. “Foi uma experiência curiosa. As pessoas iam chegando aos poucos, dava tempo de autografar, conversar com calma."
O amigo também guarda boas lembranças das manhãs de sábado, no fim dos anos 1990 e início dos 2000, quando Herz reunia na loja amigos célebres.
Costumavam passar por lá, além de Brandão, Marcos Rey, Paulo Bomfim, Ives Gandra Martins, Lygia Fagundes Telles, Ruth Rocha, Thereza Collor, Bruna Lombardi, entre tantos outros.
Mas a Cultura era muito mais do que um cenário de coluna social intelectual. A livraria era um importante destino cultural da capital paulista, referência para quem estava em busca do que havia de melhor no mercado livreiro do país.
“A Livraria Cultura de Pedro Herz faz parte da construção da nossa geração", diz ao NeoFeed o músico Luiz Antonio Sampaio Chagas, um dos principais nomes do movimento Vanguarda Paulistana. “Ali a gente sempre achava não só as novidades em primeira mão, mas obras importadas."
Certa vez, dias depois de voltar de Los Angeles sem um livro de crônicas de Bob Dylan, ele se surpreendeu ao encontrar a obra na Cultura. Também garimpou ali uma edição enxuta e acessível da caixa caríssima Sex Obssessions, do cartunista Robert Crumb.
Peça fundamental para chegar a esses achados era a equipe ultraqualificada de livreiros que circulavam pelas lojas. "Ele valorizava muito o atendimento cuidadoso e o nosso trabalho", conta a livreira Maria Carolina Borin, em entrevista ao NeoFeed. Ela trabalhou na Cultura entre 2004 e 2012.
Herz era o tipo empresário que cuidava de perto de cada detalhe do negócio: da satisfação dos clientes à organização dos livros nas estantes.
"Se alguém saía da loja sem o que ia buscar, ele queria saber o que era, para melhorar o acervo”, diz Maria Carolina. “Estava na loja todos os dias e fazia questão de comparecer aos lançamentos, para cumprimentar os autores."
Também dispensava atendimento cuidadoso aos editores. "Tinha um método raro de comprar os livros e não praticar o consignado, que hoje domina o mercado brasileiro", afirma a ex-funcionária.
O início do fim
O processo de expansão, no fim da primeira década deste século, com a transformação da loja do Conjunto Nacional em megastore, abrigando até um teatro, infelizmente, levou também ao início do fim da rede.
Aos poucos, os livros foram dando lugar a itens de papelaria, brinquedos, videogames e outros produtos que pouco tinham a ver com literatura e arte. As seções de áreas específicas, como arquitetura, música e afins foram fechando, aos poucos.
Até que, em 2017, a rede comprou a operação brasileira da francesa Fnac.
Os custos de produção ficaram cada vez mais altos e, diante da oferta de livros digitais e da concorrência ostensiva de gigantes do e-commerce, a demanda por livros vendidos em lojas físicas caiu e as dívidas se acumularam.
Herz vivia no apartamento de 150 metros quadrados do edifício Copan desde 1986. Valorizava a proximidade com o Theatro Municipal e a facilidade de acesso a outros pontos da cidade, além da vista privilegiada.
"Meu primeiro obstáculo visual é a serra da Cantareira", disse certa vez a uma reportagem sobre a reforma do prédio projetado pelo modernista Oscar Niemeyer, publicada no jornal Folha de S.Paulo.
Herz não era uma pessoa exatamente expansiva, mas tinha muitos amigos e vivia cercado por eles.
Contardo Calligaris (1948-2021) dizia que o livreiro fazia parte de um seleto grupo que o psicanalista e escritor chamava de “amigos Kuala Lumpur”.
O empresário combinava atributos como "economia de palavras inúteis, e a reação prática, sem teatralidade", como descreveu o psicanalista, no prefácio da autobiografia do empresário.
"Os amigos Kuala Lumpur devem ser capazes de decidir rapidamente o que é essencial e o que não é. Eles devem conseguir pensar (sem isso, a conversa com eles seria chata demais), mas sem deixar de agir – por exemplo, sem hesitar, subir no primeiro avião mesmo se esquecendo da escova de dentes", escreveu Calligaris.
Herz era assim, como livreiro, empresário e amigo.
