Difícil precisar a origem da expressão “o ovo da serpente”, que pode ser entendido como o “prenúncio do mal” ou o “mal em gestação”. Mas sua popularização foi ampliada a partir de 1977, quando o diretor sueco Ingmar Bergman (1918-2007) lançou O ovo da serpente.

Um dos mais impressionantes filmes sobre o nascimento do nazismo na década de 1920, com ênfase na República de Weimar, o período entre as duas guerras mundiais marcou a ascensão de Adolf Hitler ao poder. E ele o fez de modo engenhoso, ao mostrar situações do cotidiano presentes na gestação de uma nova ideologia naqueles anos turbulentos.

A jornalista brasileira Consuelo Dieguez, que integra a equipe da revista Piauí, pegou emprestado o título para denominar seu novo livro, O ovo da serpente – Nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e a chegada ao poder.

Desde as primeiras manifestações contra a alta da passagem dos ônibus em São Paulo, em junho 2013, pelo Movimento Passe Livre, vinculado à esquerda e logo usurpado por desconhecidas organizações de direita de jovens, à eleição de Jair Bolsonaro, uma nova corrente nunca vista em grandes proporções tomou conta do país.

A autora explica na introdução porque escolheu o termo: aquele 2013, que se tornou tão decisivo para o futuro do Brasil, era o Ano da Serpente no horóscopo chinês, que costuma ser indicativo de tempos instáveis.

A Revolução Russa, em outubro de 1917, lembra ela, deu-se também em um Ano da Serpente. Assim como a quebra da Bolsa de Nova York, que arrasou a economia mundial à recessão em 1929 e a queda do Muro de Berlim, em 1989. Até mesmo o ataque às Torres Gêmeas, em Nova York, em 11 de setembro de 2001, aconteceu sob o mesmo signo. Coincidência?

Uma das definições do Ano da Serpente, escreve ela, retirada de um portal de astrologia, diz que, embora tudo possa parecer fresco e calmo à superfície, esse período é sempre imprevisível – em grandes proporções.

“A parte dianteira da serpente esconde as maneiras profundas e misteriosas de sua natureza. Deve-se ter em conta que, uma vez que a serpente se desenrola para atacar, ela se move feito um relâmpago, e nada pode ser mais repentino e devastador do que ela”, observa Consuelo.

A partir de 2013, novos atores políticos entravam em cena. Como o MBL (Movimento Brasil Livre), liderado pelos jovens Renan Santos e Kim Kataguiri, e o Acorda Brasil, mais ligado a valores conservadores de direita e de apoio à Lava Jato, do qual fazia parte o “príncipe” Luiz Philippe de Orleans e Bragança.

A autora lembra que o manifesto de fundação do primeiro relacionava cinco objetivos: imprensa livre e independente, liberdade econômica, separação dos poderes, eleições livres e idôneas e fim dos subsídios diretos e indiretos a ditaduras (de esquerda).

Embora se declarasse liberal e de direita, explica ela, o MBL não defendia pautas conservadoras nos costumes. E encontrou um eleitorado amplo de militância para suas ideias. Tanto que, em 2018, o grupo elegeria quatro deputados e dois senadores e se afastaria de Bolsonaro por discordar dos rumos de seu governo logo no início.

O Acorda Brasil, por outro lado, embora se mostrasse liberal na economia, cultuava a organização tradicional da família, a hierarquia, a ordem e a religiosidade, valores que acreditavam ter sidos desprezados pela esquerda nas últimas décadas.

Consuelo busca as origens da nova direita brasileira, a partir de uma infinidade de entrevistas com políticos, empresários, militares, religiosos, produtores agrícolas, entre outros, e apuração meticulosa com personagens-chaves dessa história.

Uma narrativa que começa na manhã de 5 de setembro de 2018, dia em que Bolsonaro foi esfaqueado em Juiz de Fora. Sua apuração é cuidadosa nessa parte. “Após o atentado, o presidenciável, com míseros oito segundos por semana na TV, ganharia uma exposição de 24 horas por dia, algo com que nenhum outro candidato contava”. Bem capitalizado, o atentado fez com que sua campanha alçasse novo patamar.

O episódio, afirma ela, ajudou a mudar os rumos da eleição presidencial de 2018 e, com ela, a cara da política brasileira, “que passou a ser exercida com uma raiva jamais vista desde a redemocratização do país, em 1985”.

Mais adiante, ela explica: “Esta é a história de como um ex-capitão do Exército, desconsiderado por seus superiores — e posteriormente também por seus pares no Parlamento —, se tornou presidente da nona economia do mundo com o apoio de 57,8 milhões de eleitores".

E prossegue: "É também a história de como Bolsonaro foi capaz de reunir a seu redor evangélicos, empresários, ruralistas, operadores do mercado financeiro, militares, jovens ativistas, eleitores de centro ressentidos por serem chamados de fascistas, além de milhões de deserdados que pularam para o seu barco depois de o ex-presidente Lula ser impedido pelo Supremo de concorrer à presidência."

Segundo Consuelo, Bolsonaro arrebanhou ainda os votos de brasileiros que, de uma hora para outra, passaram a se identificar como “de direita” – embora não soubessem exatamente o que isso queria dizer e as consequências de uma gestão nessa linha ideológica.

“O fenômeno ganhou um apelido: bolsonarismo”. E apesar de tomar de empréstimo o nome do então candidato e atual presidente da República, a nova direita brasileira nunca se limitou aos bolsonaristas.”

Ao contrário: colocou sob mesmo guarda-chuva grupos tão díspares como os conservadores nos costumes, os liberais na economia, os defensores da intervenção militar e os caçadores de corruptos nascidos na Operação Lava Jato. Nesse sentido, o livro pontua todos os eventos marcantes ocorridos nos últimos nove anos, o que compõe dois terços da narrativa.

O capítulo “O que a imprensa não viu” detalha os bastidores da campanha de 2018, com situações quase surreais que se sucederam, como a dificuldade em preparar Bolsonaro para entrevistas e debates que poderiam ocorrer durante a campanha, antes de ele ser esfaqueado.

Para Consuelo, o bolsonarismo era — e continua sendo — uma dentre as muitas expressões da nova direita. “A novidade é que, sob Bolsonaro, um político que fez carreira atacando tudo e todos, quem estava contido se sentiu liberado para expor a própria fúria. Assim, independentemente do resultado das eleições de 2022, a nova direita brasileira veio para ficar. O melhor a se fazer é entendê-la", diz a autora.

Serviço:
O ovo da serpente - Nova direita e bolsonarismo: seus bastidores, personagens e a chegada ao poder
328 páginas
Impresso:R$99,90
ebook:R$44,90
Lançamento 26/08 - Companhia das Letras