Nascida em Meina, no norte da Itália, Maria Bonomi tinha dez anos quando chegou ao Brasil em 1945. O navio que trazia sua família ficou retido em quarentena na costa do Rio de Janeiro, e foi o avô Giuseppe Martinelli (sim, aquele que construiu o primeiro arranha-céu de São Paulo que leva seu sobrenome) quem se aproximou num rebocador para buscá-la.

“Descemos na Praça XV, exatamente onde hoje está o Paço Imperial”, lembra em conversa com o NeoFeed. “Para mim, foi transcendental. O Brasil era o Paço.”

Oitenta anos depois, o mesmo endereço abriga a exposição comemorativa de seus 90 anos: A arte de amar, a arte de resistir. Mais de 250 obras percorrem sua trajetória, das primeiras gravuras e pinturas aos grandes painéis e instalações. Paulo Herkenhoff e Maria Helena Peres Oliveira, sua companheira há 20 anos, assinam a curadoria.

“Essa exposição é um fecho de vida”, diz Bonomi. “Claro que continuo trabalhando — tenho encomendas para entregar. Mas, para mim, é um marco muito mágico, muito definitivo.”

A artista não expunha no Rio desde 1975, mas mantém fortes laços com a cidade. Foi ali que viveu seus primeiros anos no Brasil, além de ser terra natal de sua mãe, Georgina Martinelli Bonomi, e onde está enterrado seu avô.

“É um retorno às origens”, afirma. E às origens de seu trabalho.

Na sala Gênesis estão pinturas que Bonomi fez aos 15 anos, como Fugindo da escola (1950) e A janela (1950). O contato com a prática veio desde sua chegada ao país, quando foi morar com o avô, no Flamengo, em um casarão ainda em construção. Gostava de observar os artesãos moldando o gesso. E foi ali que criou sua primeira “obra”: um pássaro representando o Espírito Santo.

Ainda na Itália, Bonomi conviveu de perto com o melhor da produção artística local, por meio de um tio marchand. “Tive sorte de estar cercada de arte e de artistas desde cedo”, conta.

Já em São Paulo, em 1950, a mãe a levou ao ateliê de Lasar Segall (1889–1957), que a aconselhou a estudar com Yolanda Mohalyi (1909–1978). O encontro que de fato definiu os rumos de sua carreira, porém, veio com o gravador Livio Abramo (1903–1992), que lhe deu as primeiras lições de gravura e um conselho fundamental: “Maria, não se grava com força, se grava com raiva”.

“Eu fazia força porque inclinava o instrumento de maneira errada, quase vertical. E o correto é incliná-lo de forma quase paralela”, lembra. “Ele estava provocando, chamando o entusiasmo e a libido para fora de mim.”

Na obra "Amor inscrito", as esculturas de alumínio reproduzem o traço característico das gravuras de Bonomi (Foto: Vera Donato)

A mostra no Rio de Janeiro traz cerca de 250 obras, que percorrem a trajetória da artista: das primeiras gravuras e pinturas aos grandes painéis e instalações (Foto: Vera Donato)

A escritora Clarice Lispector ajudou Bonomi a enxergar a tridimensionalidade de suas obras (Foto: Acervo Atelier Maria Bonomi)

“Não vejo muito sentido em me debruçar sobre uma coisinha que acaba na casa de um colecionador. Isso não é contemporâneo”, afirma a artista (Foto: Acervo Atelier Maria Bonomi)

Quem passa por um trabalho de Bonomi reconhece sua assinatura. O rasgo das goivas e formões revela a “libido” e o “entusiasmo” ferozes que ela imprime na matéria.

“Levo para a matriz o impulso, a sinceridade, a vontade e o grito. É uma questão de risco. Porque, quando você grava, não pode refazer. Não é desenho”, explica.

Não por acaso, a exposição se intitula A arte de amar, a arte de resistir. Verbos muito presentes em sua trajetória. Durante a ditadura militar, Bonomi gravou o horror. Obras como Gengivas à mostra (1968), as séries Balada do terror (1970) e Viagem para dentro (1975) nasceram como grito contra o regime. Esta última, um ano após sua prisão ao regressar da China.

A mostra inclui ainda uma grande instalação de vermelho intenso: Amor inscrito. No espaço tátil, esculturas côncavas de alumínio reproduzem o traço característico de suas gravuras.

Entre os vazios das peças, ecoa uma das definições mais precisas da artista: “A gravura vive do vazio”. Aqui, porém, o vazio é tomado pelo vermelho — cor do sangue, do desejo e da paixão. O espaço torna-se corpo, uma alegoria do encontro de Bonomi com Maria Helena.

Topografia de gestos

Foi a partir de um encontro com a escritora Clarice Lispector (1920–1977), que lhe pediu uma matriz de presente, que Bonomi passou a compreender a gravura como objeto escultórico.

“A matriz se tornou o que sempre foi, só que eu não estava dando valor a isso. É receptáculo, pode virar obra na parede, molde para o concreto. Tudo é matriz”, afirma.

Clarice ajudou Bonomi a enxergar o tridimensional latente sob o plano em sua obra. Em 1970, o crítico Mário Pedrosa (1900–1981) escreveu que as formas em sua obra “cada vez mais se negam como forma e se apresentam como estruturas”.

Em 1972, Bonomi apresenta sua primeira escultura, Solombras. A partir de matrizes de madeira, grava estampas e molda formas em poliéster.

Da escultura à intervenção pública, o movimento foi natural. Dois anos depois, ergue Ascensão, painel em concreto na Igreja da Cruz Torta, em São Paulo.

Desde então, sua obra se distribui pela cidade como uma topografia de gestos.

Está na fachada do Edifício Jorge Rizkallah Jorge, na rua Bela Cintra; em Arrozal de Bengüet: Paisagem (1979), no foyer do Hotel Maksoud Plaza; e nos relevos monumentais do metrô — A Construção de São Paulo (1998), na estação Jardim São Paulo, e Epopeia Paulista (2004), na estação da Luz.

“Não vejo muito sentido em me debruçar sobre uma coisinha que acaba na casa de um colecionador. Isso não é contemporâneo”, afirma.

Há décadas sem galeria, vê o mercado de arte como “supérfluo” e “frívolo” — “O espírito é muito superficial. Falta preparo, falta consistência”, lamenta.

Para Bonomi, a arte não é apenas objeto. É também um gesto expandido até tocar o corpo coletivo. “O homem foi à Lua, atravessou distâncias, criou festivais para multidões. É isso que eu gostaria de alcançar com os meus trabalhos”, revela.

Se depender das três milhões de pessoas que diariamente descem as escadas rolantes, esperam o próximo trem no metrô de São Paulo e, sem perceber, cruzam com seus painéis no caminho, Bonomi já alcançou seu objetivo. Sua linguagem atinge o domínio coletivo.