Ilha de Spitsbergen, arquipélago de Svalbard, Noruega. A cerca de mil quilômetros do Polo Norte, a paisagem é branca, quase imóvel. Cortando o horizonte gelado, um brilho metálico anuncia a chegada ao Svalbard Global Seed Vault (SGSV), o banco internacional de sementes. A 130 metros de profundidade na montanha, o prédio é como uma cápsula do tempo. Uma ponte entre o passado e o futuro; um refúgio para o caos do presente.
Também chamado de “cofre do apocalipse” e “arca de Noé das plantas”, o SGSV guarda quase 1,4 milhão de amostras de sementes, de aproximadamente 6 mil espécies. Pequenos fragmentos do patrimônio agrícola garantem a diversidade genética de variedades cultivadas em todo o mundo.
O abrigo funciona como um backup da segurança alimentar global contra guerras, desastres naturais, patógenos vegetais, cortes de financiamento, disputas políticas e... as mudanças climáticas.
Inaugurado em 26 de fevereiro de 2008, o repositório recebe cópias duplicadas de sementes enviadas por bancos de germoplasma espalhados pelo planeta.
A remessa mais recente, a de número 68, chegou no fim de outubro, com 21.647 novas amostras. Pela primeira vez, as Filipinas e o Peru mandaram exemplares de cultivos tradicionais: arrozes e pimentas, respectivamente. Na mesma leva, o Centro Mundial de Hortaliças, na Tanzânia, levou o maior lote de sementes de verduras e legumes africanos já depositado no acervo.
Parte da riqueza agrícola brasileira também está protegida no interior da montanha gelada. Do primeiro envio, em 2012, ao último, em março passado, foram cinco entregas, despachadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa.
“Quase todas, cerca de 93%, formam a base da alimentação dos brasileiros”, diz o pesquisador Juliano Gomes de Pádua, supervisor do Banco Genético da Embrapa, em conversa com o NeoFeed.
Arroz, feijão e milho, mas tem também sementes de cebola, soja, pimenta, abóbora, maracujá, caju, pepino. São 8.125 amostras, cada uma com cerca de 500 sementes, de 26 produtos agrícolas, acondicionadas em 33 caixas, protegidas pelo frio da montanha.
A Embrapa mantém em Brasília um cofre nos moldes do norueguês — cópias de segurança de praticamente tudo o que já foi e é cultivado no país, com 210.178 variedades, de quase 3 mil espécies, o maior da América Latina. Os exemplares foram enviados pelos 166 bancos ativos da empresa distribuídos pelo país.
A história dos Krahô ilustra à perfeição a importância das “arcas de Noé” não só para a segurança alimentar como para a identidade brasileira. Em meados dos anos 1990, o povo indígena passava fome: variedades antigas de milho haviam desaparecido das aldeias do nordeste do Tocantins. A Funai então procurou a Embrapa e, no Banco Genético, encontraram as sementes tradicionais.
O cacique foi até Brasília e, ao entrar na câmara fria do cofre e reconhecer os exemplares, ele chorou, conta Juliano. Os Krahô guardam uma relação cultural e espiritual com as sementes.
Um ano depois, o líder indígena retornou à Embrapa com uma cuia repleta de novas sementes; as que ele havia levado frutificaram e se multiplicaram: “Estou trazendo de volta porque se um dia nossos filhos ou nossos netos precisarem, vão saber onde encontrar”.
Bombardeios nucleares
Em escala global, esse é o propósito do cofre em Svalbard. A Noruega investiu no total € 28,3 milhões no projeto e arca com a maior parte dos custos de manutenção — cerca de € 1 milhão anuais.
A operação do SGSV cabe ao NordGen, centro intergovernamental para a conservação dos recursos genéticos agrícolas e florestais dos países nórdicos, e ao Crop Trust, organização sem fins lucrativos dedicada ao financiamento e coordenação de iniciativas de preservação da diversidade agrícola mundial.
Os países não pagam nada para guardar suas sementes no cofre. Mas despachá-la para o Ártico custa caro. Para os brasileiros, em torno de R$ 30 mil, sem contar os gastos com a preparação das amostras, lembra ao NeoFeed Aluana Gonçalves de Abreu, pesquisadora da Embrapa.
O cofre é formado por 120 metros de túneis escavados na rocha e três câmaras de armazenamento com capacidade total para 4,5 milhões de amostras. Lá dentro, o ar é seco e a temperatura constante em 18ºC negativos. Feita de concreto e aço inoxidável, a entrada foi concebida para resistir até a bombardeios nucleares.
A escolha de Svalbard como base para o SGSV levou em conta uma combinação de fatores ambientais e geopolíticos. Sempre congelado, o terreno funciona como uma camada extra de proteção. Frio capaz de preservar as sementes, caso o abrigo passe por uma pane elétrica.
Além disso, o arquipélago está em uma região longínqua o bastante para proteger as coleções da ameaça humana, como vandalismos e sabotagens. Mas acessível o suficiente para facilitar o envio das sementes. O cofre está a cerca de um quilômetro e meio do aeroporto Longyearbyen, a comunidade urbana mais setentrional do mundo.
A Noruega oferece ainda um ambiente político estável e confiável, com instituições sólidas e baixo risco de interferência, essencial para sediar um projeto que se pretende global.
As sementes de trigo de Israel, por exemplo, dividem as prateleiras da "arca" com as de cevada da Palestina. Ou as de milho da Coreia do Norte com as de feijão da Coreia do Sul.
Graças às condições naturais e ao design robusto da construção, o abrigo não requer manutenção nem vigilância presencial constante. Por isso, o lugar fica lacrado a maior parte do tempo. Só é aberto poucas vezes ao ano, sobretudo quando novas cargas chegam — ou, em casos raríssimos, quando uma retirada se faz necessária.
Aconteceu apenas duas vezes, em 2015 e 2017, ambas envolvendo a Síria. Deflagrada em 2011, a guerra civil devastou a agricultura do país. As sementes resgatadas do frio foram cultivadas e multiplicadas em campos experimentais no Marrocos e no Líbano, para um dia retornarem à sua terra de origem.
O florescimento das plantações de lentilha, cevada e grão-de-bico sírios ilustra à perfeição o propósito do cofre: a continuidade da vida quando tudo ao redor ameaça ruir.
E é nesse contexto de proteção e esperança que a instalação da artista norueguesa Dyveke Sanne, de 75 anos, no alto do abrigo, revela todo o seu simbolismo.
A escultura projeta sem cessar luzes azuis e verdes acima da montanha branca, como um farol indicando o caminho até as sementes. Visível a quilômetros de distância, ela brilha mesmo sob as nevascas mais intensas e as noites mais longas do Círculo Polar Ártico. O nome da obra: Repercussão perpétua.