Desde que surgiu, em 1892, a revista americana Vogue só teve editoras-chefes. E elas ficaram tanto tempo no comando que, ao longo de mais de um século,  o cargo foi ocupado por apenas sete mulheres. A mais longeva delas foi Edna Woolman Chase, de 1914 a 1952. A toda poderosa Anna Wintour assumiu o posto em 1988 e continua firme e forte até hoje, 35 anos depois.

Uma publicação feminina ser liderada apenas por mulheres pode até parecer óbvio, mas está longe disso. Em 130 anos, comemorados no ano passado, a Vogue é uma exceção no segmento editorial de moda e comportamento, predominantemente masculino.

A história da revista se mistura à história da emancipação feminina. A luta pelo direito à educação superior; ao voto e ao trabalho fora de casa. A conquista do prazer sexual, sem o risco de uma gravidez indesejada, graças à pílula anticoncepcional. Os editoriais de moda acompanharam de perto a evolução dos costumes e comportamentos. Estava lá a liberdade proporcionada pelas calças comprimidas, minissaias e biquinis.

As páginas da revista sempre funcionaram como uma vitrine também de luxo, com o melhor do melhor, escolhido pelas mais respeitadas editoras e editorialistas do mundo. Se saiu na Vogue, tem valor, tem charme, vale quanto custa. Não à toa, suas páginas de anúncios estão entre as mais caras do mundo.

“Como tantos outros projetos fenomenais, a revista começou em um quarto vago na casa de alguém”, conta a jornalista especialista em arte, história e estilo de vida Nina-Sophia Miralles, autora de Nos bastidores da Vogue: A história da revista que transformou o mundo da moda, disponível em português pela Editora Record.

A diferença em relação a outros títulos sempre esteve no quão longe foi a publicação, para marcar o “nosso entendimento de cultura”, como define a escritora. “Desde o final do século XIX, Vogue é a referência da revista popular, pioneira da bela vida.

Em 2021 — ano em que este livro é escrito —, mais de 125 anos depois de sua criação, a revista se espalha por 25 territórios, tem 24,9 milhões de leitores da edição mensal impressa, 113,6 milhões de usuários mensais da edição on-line e 118,7 milhões de seguidores nos diversos meios digitais”.

No decorrer de sua existência, a Vogue teve apenas quatro proprietários: Arthur Turnure (1892-1909), Condé Montrose Nast (1909-1934), Lord Camrose (1934-1958) e agora a família Newhouse, no comando desde 1959. E todos souberam conduzir os negócios de modo a manter a revista como uma das mais fortes e influentes publicações de moda e tendência do mundo.

Líder de mercado inconteste há mais de um século, a revista é uma máquina eficientíssima de fazer (muito) dinheiro. E isso acontece principalmente em países de economia mais sólida e onde ainda as tiragens impressas sustentam o interesse de parcela significativa dos consumidores de bancas de jornal. Impressa ou digital, “não é apenas uma publicação de moda, é o padrão, a referência, uma bíblia”.

O que fez da Vogue um sucesso tão duradouro?

Nina-Sophia Miralles recuperou a trajetória das três edições mais importantes da revista — a Vogue americana, a original e a até hoje a matriz do poder; a Vogue britânica, a segunda a ser criada e a segunda mais influente; e a Vogue Paris, que representa o legado da França como o berço da alta-costura mundial.

A autora volta às origens e esmiúça como uma gazeta nova-iorquina de fofocas para nova-iorquinos esnobes chegou a uma das marcas mais conhecidas do planeta.

Para fazer o que se pode chamar de biografia da revista no sentido amplo, Nina-Sophia vasculhou um século de história, avaliou o impacto de duas guerras mundiais, dos avanços tecnológicos e das mudanças na indústria da moda, entre outros eventos. Ela expõe fracassos e sucessos e acompanha a epopeia vertiginosa do título e de seus criadores. E, claro, de suas disputas internas.

“A narrativa de Vogue seria incompleta sem o seu elenco exuberante, um conjunto singular de personalidades — dos editores aos proprietários — que deixaram seus legados pessoais impressos nas páginas da revista”, lê-se em Nos bastidores da Vogue.

Ela queria a Vogue para ela

Do arrogante fundador Arthur Turnure e o ganancioso Condé Montrose Nast à exigente Mitzi Newhouse, a dona de casa bilionária que, em um momento de capricho, durante um café da manhã como qualquer outro, convenceu o marido a comprar a Vogue para ela. Cada um com seus interesses.

“Os editores foram igualmente memoráveis”, afirma a autora. Dentre eles, há um herói de guerra condecorado que participou da Resistência Francesa e uma filha da realeza hollywoodiana criada em um palácio cor-de-rosa.

Nina-Sophia escreve que a equipe editorial formava frequentemente um bando indisciplinado e extremamente variado que mereceu ser rememorado no livro. Bem como os lendários e geniais fotógrafos Horst P. Horst, Cecil Beaton e Helmut Newton.

“Porém, a constante disputa pelo poder entre a direção para faturar e os departamentos editoriais revela a interação complexa entre criatividade e comércio”, escreve ela.

Caso extraconjugal, dança com nazista e reabilitação

O universo Vogue é muito mais rico do que se pode imaginar. O livro traz histórias memoráveis, como a invenção da passarela durante a Primeira Guerra Mundial. E um escândalo nos anos 1920, quando a editora britânica, sabidamente lésbica, seduziu a secretária, que se separou do marido para ficar com a chefe.

Ou o caso da editora francesa que dançou com um “diabo nazista” na Paris ocupada e recorreu a artimanhas extraordinárias para evitar que os bens da revista fossem confiscados pelos comandantes de Hitler. Há ainda o relato de uma editora que, na década de 1980, por causa de boatos, foi obrigada a passar um período na reabilitação, mesmo sem nunca ter tido problemas com drogas ou álcool.

Hoje, em virtude do surgimento das mídias sociais digitais, os editores-chefes da revista se tornaram celebridades independentes.

“Deixaram de ser comentadores de moda e se tornaram ícones culturais plenos. Anna Wintour, editora-chefe da Vogue americana, reina suprema há três décadas e meia, e sua presença atemorizante e todo-poderosa é sentida por todos no seu setor e para além dele”, conta Nina-Sophia. “Igualmente famosa é a sua colega ruiva, a diretora de criação Grace Coddington, que é a queridinha, em contraste com o despotismo de Wintour.”

O poder da marca

Nessa história inédita da revista, o livro de Nina-Sophia mostra também que as grandes marcas de consumo ligados à moda – vestuário, cosméticos, acessórios e calçados – investem pesado em propaganda e fazem lobby para se tornar pauta de seus editorais.

Como esta e outras publicações são centros irradiadores de influência, muitos negócios são fechados ou redimensionados se recomendados nas páginas da revista.

E a publicação, que já fazia o papel de influenciadora um século antes do surgimento da internet, na era das mídias sociais, segue poderosa.

Serviço:
Nos bastidores da Vogue -- A história da revista que transformou o mundo da moda
Nina-Sophia Miralles
Editora Record
308 páginas
Impresso: R$ 94,90