Brasília - Um dos principais cientistas brasileiros, Silvio Meira é agitado, mas guarda a fundamental característica de mestres e professores: a atenção com o interlocutor. Por mais que toque — o verbo é apropriado, pois ele é também percussionista — mil tarefas, consegue parar e ouvir de maneira concentrada perguntas e comentários.
Na manhã da quarta-feira, 22, depois de uma palestra na sede do Instituto Serzedello Correa, escola superior do TCU, Meira, com paciência, falou com todos os servidores públicos e alunos que o procuraram, mesmo com o adiantar da hora e um avião prestes a partir para o Recife, onde mora e onde criou, há 25 anos, o Porto Digital, um parque de excelência em tecnologia.
Meira acaba de publicar um livro com a jornalista Rosário Pompéia. Trata-se do A próxima democracia: 32 teses para o futuro da política no mundo figital (Editora Amarylis), que pretende oferecer um manual para a reconstrução do pacto social. O termo figital, para os autores, significa a fusão das realidades física, digital e social.
Em entrevista ao NeoFeed, Meira, um atento observador dos movimentos da política e do universo digital, falou sobre um dos temas que mais o mobiliza: os riscos para a democracia no mundo hiperconectado. Mas avaliou também a dificuldade do Estado em oferecer serviços no ambiente digital, como é o caso do gov.br. “O Brasil é uma confusão digital. O gov.br em vez de resolver problemas da cidadania, cria mais problemas para a cidadania.”
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Qual a próxima democracia?
A próxima democracia é uma democracia em plataformas. Isso deveria ser óbvio para os principais atores políticos formais, afinal a política formal entrou em colapso por causa de um mundo em plataformas. E essa política, que foi mobilizada fora da política, é uma combinação de pós-política e anti-política ao mesmo tempo. Ela circundou, limitou e constrangeu a política para ser tangida por interesses ora escusos e ora obscuros, mas exercidos de forma articulada no espaço digital. E no plano digital e social tem um conjunto de regras que não corresponde à realidade da política física.
Quais são essas regras?
A transformação da internet, de comunicação para conexões, transformou o público e a audiência em redes. O cidadão é descolado totalmente da realidade objetiva. Isso cria uma combinação de cinismo com apatia que destrói a representação democrática.
Como funciona isso na vida cotidiana?
Essa política de fatos em plataformas tem como exemplo a Lei Felca. É uma lei que estava no Legislativo há pelo menos 15 anos. Foi preciso, no entanto, um agente, um líder-chave cuja opinião leva as outras pessoas a usá-lo como vetor representativo dessa opinião. Ali, Felca se tornou a representação democrática não-eleita. E ele forçou a aprovação de uma lei, com a coragem pessoal dele — o que a gente não deveria exigir do representante informal. Naquele caso, porém, ele mudou o espaço legislativo. A razão de Felca era boa. Mas quantas vezes isso não acontece por razões que não são boas? Por isso, é necessário uma transparência radical que elimine a figura do gestor-salvador.
E no caso das plataformas?
As plataformas são consideradas sistemas tecno-feudais, como diz Yanis Varoufakis, ex-ministro grego. Os dados dos súditos são produto do trabalho e da vida deles. Eles os entregam a terceiros sem que tenham algum retorno objetivo — a não ser serem mais explorados. Essa é a noção do técnico-feudalismo. E as plataformas tecno-feudais atravessaram a política. E a política não conseguiu reagir. É essa a política que leva à apatia e ao cinismo. A falha do Estado em entregar serviços públicos acabou por afastar o cidadão da política.
Isso mudou a própria política…
A política ficou circundada na personalização do político. Porque as pessoas chegam para gente, que escreve livros de política e democracia, e pergunta: "Mas você está do lado de quem? Você é Bolsonaro ou você é Lula?" Os partidos foram desidratados.
Qual é o reflexo no dia a dia política brasileira?
Existe um Congresso que aprova gastos e corta receitas ao mesmo tempo. No fim, tem um bocado de gente dentro e fora do Congresso, reclamando da taxa de juros. Mas se você aprova gastos e não nomeia receitas, se você não cria impostos, você tem de tomar dinheiro emprestado e criar um buraco negro de gasto público. Os juros de 15% não estão aí por causa da inflação, mas, por causa da dívida pública. E aí se restringe a economia e não se consegue ter um debate cognitivamente sofisticado. É um mercado de ideias que a gente vive em plataformas. A simulação cada vez mais bem feita passa a ser a realidade.
"O Redata não foi discutido. A gente vai trazer data centers de fora do Brasil e isso não vai melhorar o controle sobre os dados e algoritmos usados"
Como resolver?
No caso do Brasil, a gente não tem regulação nenhuma das plataformas. Cria-se então a ilusão de uma ditadura do Judiciário. Porque o Legislativo se recusa a discutir coisas que afetam os interesses de grupos extremamente poderosos.... o lobby das plataformas em Brasília é gigantesco. E aí, em última análise, o Supremo decide. Ou seja, o Supremo legisla. Mas o Legislativo não está fazendo o que deveria. O Legislativo sequestrou o Executivo, porque as emendas parlamentares dispersaram o investimento público e não se consegue mais ter estratégias profundas. Elas são episódicas. O cidadão não se reconhece nas ações públicas e o serviço que se entrega a ele é de má qualidade.
Você poderia detalhar esse ponto?
No Brasil, o Estado é analógico nos Três Poderes. Nenhum poder da democracia brasileira é digital. Nenhum entende que o espaço digital tem uma dimensão física, uma dimensão digital e uma dimensão social. Nenhum entende de plataformas. Uma demonstração de que nenhum entende de inteligência artificial, por exemplo, é a qualidade da proposta de regulação de IA que saiu do Senado. É o resultado de um processo descolado da realidade do que é a inteligência artificial. Eu começaria do zero na Câmara.
Mas o que é preciso?
Uma descentralização radical em rede do poder. A concentração de poder na representação democrática atual destrói a democracia. A política continua analógica. Você elege o cara em Sanharó, em Pernambuco, ele vem para Brasília, mas você não sabe o que ele faz. Não existe um sistema de prestação de contas. O próprio sistema de tomada de contas do TCU é a posteriori; não acontece durante a execução. A população que está lá na base está vendo que a obra está sendo mal feita, mas ela não tem voz. A governança tem de ser dinâmica, as instituições têm de ser flexíveis. Só assim, você acaba com a figura do gestor-salvador.
"Quem está fazendo lobby para regular data center, para regular IA, são majoritariamente as plataformas e os negócios que não tem nenhum interesse na sustentabilidade do Brasil"
O que essa democracia de plataforma e a falta de iniciativa do Estado atrapalha o mundo dos negócios?
O Estado deixou de imaginar. Um dos princípios que a gente defende no livro é a retomada da imaginação política, o princípio da capacidade criativa do povo junto com os seus representantes para refundar a democracia. Mas a gente não experimenta. O Brasil é uma confusão digital. Em vez de se fazer uma plataforma que resolva os problemas da cidadania, essa plataforma cria mais problemas para a cidadania. O gov.br é uma das plataformas mais complexas e confusas para o cidadão comum que eu já vi. É um caos completo e ninguém resolve.
Como você avalia a política do governo em relação aos data centers?
O Brasil tem energia limpa em quantidade suficiente para data center em larguíssima escala. Mas, como tudo que a gente faz no Brasil, discutimos muito pouco. O Redata não foi discutido. A gente vai trazer data centers de fora do Brasil e isso não vai melhorar o controle sobre os dados e algoritmos usados. Eles vão continuar na legislação de fora do Brasil, nas empresas estrangeiras. Nós não temos uma política para fomentar data centers brasileiros, com nuvens brasileiras. Outra coisa: estamos fazendo uma regulação de inteligência artificial que antecede uma estratégia brasileira para a inteligência artificial. É um negócio totalmente sem pé nem cabeça.
Por quê?
Deveria ser o contrário: criar uma estratégia para ter IA brasileira e aí começar a pensar em como regular. Do contrário, as iniciativas brasileiras são reguladas fora do escopo sociopolítico-econômico. Quem está fazendo lobby para regular data center, para regular IA, são majoritariamente as plataformas e os negócios que não tem nenhum interesse na sustentabilidade do Brasil.