Um episódio infame da Copa do Mundo de 2014 inspirou a dupla de cineastas uruguaios Martín Barrenechea e Nicolás Branca a rodar o filme “9’’. Esse era o número da camisa do atacante Luis Suárez, que mordeu o zagueiro Giorgio Chiellini durante uma partida dramática, em que o Uruguai eliminou a Itália do torneio, realizado no Brasil.
Após a mordida no ombro do adversário, em uma disputa de bola na área, o craque foi julgado pelo Comitê Disciplinar da FIFA e acabou fora da Copa. Foi suspenso de nove jogos oficiais e banido por quatro meses de atividades ligadas ao futebol (inclusive pisar em estádios). Também foi obrigado a pagar multa de 100 mil francos suíços.
“Aquilo foi uma loucura. Na época, vivemos uma histeria coletiva no Uruguai”, disse Nicolás Branca, em Gramado, onde “9” levou três prêmios na recém-encerrada 50ª edição do festival de cinema da Serra Gaúcha. Na categoria de títulos estrangeiros, a obra ganhou o kikito de melhor filme, de ator (para Enzo Vogrincic) e o prêmio da crítica.
“Assistíamos à imagem explícita da mordida de Suárez, mas não queríamos ver. Nós dizíamos: ‘Não, ele não mordeu ninguém’. Isso incluía desde jornalistas esportivos até o nosso presidente da República. Hoje me dá vergonha quando me lembro daquele incidente”, afirmou Branca ao N.
Nunca ter esquecido a mordida de Suárez na Copa foi o que encorajou o cineasta a escrever o roteiro de “9”. Aquela sequer foi a primeira cravada de dentes do craque em rivais em campo. Em 2010, o uruguaio já havia atacado o holandês Otman Bakkal quando defendia o Ajax, em jogo contra o PSV. Em 2013, a vítima foi o sérvio Branislav Ivanovic, do Chelsea, durante partida contra o Liverpool de Suárez.
“Começamos então a pensar no que acontece com esses jogadores de elite, quando eles passam por crises que ameaçam acabar com as suas carreiras. Como foi o caso de Suárez, que, para piorar, era reincidente”, contou o parceiro de Branca, tanto no roteiro quanto na direção, Martín Barrenechea.
Ainda sem data para estrear no circuito comercial no Brasil, “9” não reconstitui nas telas propriamente a mordida de Suárez jogando pela Celeste (como é conhecida a seleção uruguaia). Também não retrata com fidelidade a trajetória do jogador (atualmente atacante do Nacional, equipe do Uruguai). O episódio ocorrido na Copa, quando Suárez tinha 27 anos, serviu apenas como um pontapé para a história do filme.
Nem ficamos sabendo no filme se a agressão em campo também foi uma mordida, já que ela não é registrada pela câmera. A violência é apenas comentada, mas sem muitos detalhes. O que o espectador sente, já na abertura do filme, é um clima muito pesado no ar.
Quando a ação tem início, um jogador uruguaio jovem e bem-sucedido (interpretado por Enzo Vogrincic) está viajando de volta para casa. Ouvimos no rádio do carro que o transporta, após seu desembarque tumultuado no aeroporto de Montevidéu, que ele atacou um adversário em campo, defendo a seleção de seu país, o que pegou muito mal na cena internacional do esporte.
“Colocamos aqui o foco no humano, já que percebemos uma grande desumanização dos jogadores. É como se um verdadeiro circo sempre fosse montado ao redor deles, o que só piora em momentos turbulentos”, disse Branca. O cineasta escolheu o gancho para o filme após presenciar uma situação surreal poucos dias após aquela mordida na Copa.
“Ao passar diante da casa da mãe de Suárez, quando ele foi para Montevidéu, para se recolher temporariamente, vi uma grande bagunça. Torcedores que foram dar o seu apoio se aglomeravam ao redor da casa. Era um evento, com barraquinhas de comida e tudo mais. Uma situação estranha e até mesmo violenta”, afirmou ele.
Daí veio a ideia de contar a história do ponto de vista de um jogador envolvido em alguma confusão. É a pessoa por trás do mito, tentando escapar do inferno em que ela se meteu. “É como se Suárez estivesse olhando pela sua janela, observando como todos nós ficamos loucos do lado de fora”, disse Branca, rindo.
Barrenechea lembra que existe praticamente uma “máquina” por trás desses jogadores que ganham muito dinheiro e despertam tanto interesse no público. “E eles são geralmente jovens, muitas vezes com seus valores e sua educação em formação, o que nem sempre os leva a tomarem as melhores decisões de suas vidas”, comentou.
O roteiro ainda aproveita para registrar a pressão familiar, agravada ainda mais quando o jogador tem o pai como empresário. Como é o caso aqui. “O pai acaba depositando no seu filho os seus desejos e as suas frustrações, o que aumenta a carga emocional no atleta. E, ao misturar o profissional e o afetivo, a situação pode ser cruel com tantos interesses em jogo”, afirmou Barrenechea.
Para explorar no roteiro o conflito familiar, quando o jogador deixa alguém muito próximo cuidando dos negócios, a dupla de cineastas pesquisou outros casos. “Buscamos respaldo nas histórias de Leonel Messi e de Neymar, que também são representados por seus pais”, contou Barrenechea.
Pelo menos no filme, a cobrança é tanta que o jogador começa a se questionar se não é melhor aposentar as chuteiras, aproveitando que sua carreira está em baixa. A vizinha do condomínio onde ele mora (Sofía Lara) o ajuda a descobrir como seria viver como um jovem normal. “Até porque aquela imagem de vida maravilhosa que os jogadores têm muitas vezes pode ser só uma ilusão criada pelas redes sociais e pelos meios de comunicação”, comentou Branca.