Esbanjando vitalidade e com a promessa de um novo álbum, o cultuado grupo Azymuth abriu os trabalhos de 2023 com a realização de dois shows inaugurais em celebração aos 50 anos de uma trajetória singular.

Capítulo a parte na história do jazz feito no País, o trio carioca conquistou ouvintes em todo o mundo desde que, em 1977, foi a primeira banda brasileira a se apresentar no Festival de Jazz de Montreux, na Suíça.

Com ingressos esgotados para ontem e hoje ( 10 e 11/2), o palco escolhido para estrear a série de shows que, no segundo semestre, percorrerá países como Inglaterra, Bélgica, Alemanha e Áustria, foi igualmente notório: o espaço intimista do Little Club, sediado no Beco das Garrafas, o trecho sem saída da rua Duvivier que desemboca na Praia de Copacabana, no Rio, onde também resiste o histórico Bottle’s Bar.

Para o leitor não iniciado, vale explicar: o Beco das Garrafas foi o epicentro de onde surgiram, no final dos anos 1950 e no início da década de 1960, figuras luminares da música popular brasileira como Sergio Mendes, Elis Regina, Wilson Simonal, Rosinha de Valença e Jorge Ben Jor.

O inusitado batismo do templo musical carioca veio do hábito de parte da vizinhança, incomodada com o barulho da boêmia apinhada nos bares, literalmente jogar garrafas das janelas de seus apartamentos.

“É uma satisfação comemorar nossos 50 anos no Little Club, casa onde toquei por muito tempo e conheci grandes amigos e artistas. Dei canja com muita gente boa por lá. Eu e o Alex curtimos muito o Beco”, disse ao NeoFeed Ivan Conti, o legendário baterista Mamão, que faz menção ao seu grande parceiro, o contrabaixista Alex Malheiros, com quem ele fecha, no jargão musical, uma das mais poderosas “cozinhas” do Brasil.

“Na minha adolescência, o Little Club era um altar da nova música do Brasil, que ali era apresentada pelos grandes artistas e instrumentistas que fizeram história por aqui e no mundo”, recorda Malheiros.

Origens

Formado por Mamão, Malheiros e o tecladista José Roberto Bertrami (1946 – 2012), o trio se reuniu informalmente em 1969, como músicos da noite carioca, na lida dura dos bailes da extinta choperia Canecão.

O recorte temporal de meio século do Azymuth, na verdade, faz menção ao primeiro registro fonográfico do grupo, o lançamento, em 1973, do álbum que contém a trilha sonora do documentário O Fabuloso Fittipaldi.

Dirigido por Roberto Farias, o longa-metragem reconstituía a trajetória do pioneiro piloto brasileiro Emerson Fittipaldi até a conquista, em 1972, do primeiro de seus dois títulos de campeão mundial de Fórmula 1 – o segundo, alcançado em 1974.

Majoritariamente instrumental e com uma estética moderna de fusão de gêneros locais, como a bossa nova e o samba, e ritmos estrangeiros, como o soul e o funk, a trilha sonora do filme foi assinada em parceria com o cantor e compositor Marcos Valle, que se tornou espécie de padrinho do trio – o nome Azymuth faz menção a uma composição de sua autoria em parceria com o baixista Novelli.

De coadjuvantes a protagonistas

Ao longo dos anos 1970, atuando em trio ou em gravações individuais, os músicos do Azymuth também foram coringas de grandes artistas de nossa música, entre eles, Roberto e Erasmo Carlos, Paulinho da Viola, Edu Lobo, Hyldon, Clara Nunes, Maria Bethânia, Doces Bárbaros, Quarteto em Cy, Raul Seixas, Gal Costa, Toquinho e Vinicius de Moraes.

Ao conquistar sucesso nacional com o tema Linha do Horizonte – das raríssimas composições cantadas do grupo, de seu clássico primeiro álbum autoral, de 1975 – o Azymuth foi logo reconhecido como um dos combos mais expressivos da música instrumental brasileira.

No final dos anos 1970, com a apresentação em Montreux e também no Newport Jazz Festival, em Nova York, o grupo caiu nas graças de radialistas mundo afora e assinou o longevo contrato com a gravadora norte-americana Milestone Records, onde permaneceram de 1979 a 1989.

Desde 1996, e com mais de dez álbuns editados, o trio faz parte do elenco de artistas do selo britânico Far Out Recordings, onde lançou seu mais recente título Demos (2019), uma compilação, em dois volumes, com raríssimos registros do grupo no biênio 1973-1975.

“Conseguimos nos estabilizar no cenário do jazz e em torno de muitos países, conquistando novas plateias e amparados por jovens à procura de ‘novos sons’, o que é um paradoxo devido a longeva carreira do Azymuth”, brinca Malheiros. “Mas isso vem nos norteando a cada vez mais fazer o que há de melhor em nossos corações”, garante.

Reinvenção

Com a morte de Bertrami, um dos instrumentistas e arranjadores mais respeitados do País, depois de um breve hiato e mais de 30 álbuns lançados, o Azymuth foi reformulado com o ingresso, em 2015, do tecladista Kiko Continentino, espécie de herdeiro da tradição de seu antecessor, que foi um dos pioneiros do uso de sintetizadores no Brasil, além de exímio no comando de instrumentos icônicos, como o piano elétrico Fender Rhodes, o órgão Hammond B-3 e o Clavinet, teclado de timbre lisérgico.

Somada à polirritmia irresistível da cozinha de Mamão e Malheiros, essa usina de teclados deu um toque personalíssimo à sonoridade do trio – carinhosamente intitulada por fãs estrangeiros como “crazy samba”.

Fiel a essa fórmula, Continentino encara com satisfação o desafio de dar continuidade ao fascínio que o trio tem despertado em sucessivas gerações de ouvintes e artistas, como aconteceu, no começo dos anos 2000, com as bandas Jamiroquai e Incognito, e mais recentemente com os músicos do BadBadNotGood, também influenciados pela estética do veterano grupo.

“Azymuth, para mim, é presente, passado e futuro. A música deles tem milhões de formas, gêneros, ritmos e cores; se propaga de uma forma muito ampla e complexa. O Azymuth representa uma quebra de paradigmas, de estilos e gêneros, e acabou criando uma marca fora de série”, defende.

Antecipando que 2023 também reserva aos fãs um novo álbum com composições inéditas que já estão sendo trabalhadas pelo grupo, e ansioso para cair na estrada, Mamão encerra a conversa em tom festivo.

“Vamos seguir trilhando nosso caminho. Nosso público é fantástico. Por isso estamos sempre juntos, inovando, apresentando e acolhendo a música de todos os gêneros. São 50 anos de máximo prazer e de música: esse é o Azymuth.”