A chef Morena Leite está, como deseja, se transformando num polvo. Após ter de abrir mão às vésperas da inauguração do que seria a nova sede do Capim Santo, seu restaurante icônico em São Paulo, e dispensar mais de 300 dos 500 funcionários do grupo logo no início da pandemia, ela tem criado vários braços de atuação para dar a volta por cima. O mais novo deles é seu primeiro espaço dedicado a eventos, a Casa Capim Santo, localizado no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, que será inaugurado no próximo mês.
O que era uma operação padrão de cinco restaurantes e buffet em São Paulo e no Rio até o início de 2020, tem se transformado desde então num “conglomerado de alimentação” com a reconfiguração da estrutura para diferentes momentos e espaços: em casa, na festa, no hospital, na escola, no hotel. E com a perspectiva de fechar este ano com faturamento 10% acima de 2019, " se tudo seguir no ritmo que estamos imaginando", diz ela.
A primeira aposta foi assumir o restaurante do hospital Sírio-Libanês (SP), aberto do café da manhã ao jantar, com direito a room service para os acompanhantes. Também montou uma estrutura de grande escala para atender até dez escolas com alimentação caseira e saudável. Atualmente responde pelo refeitório dos colégios São Luís e Beacon (SP), nos quais serve mais de 4 mil alunos por dia.
Para poder funcionar parcialmente durante o período de isolamento, levou o Capim Santo para os jardins do Museu da Casa Brasileira, onde funcionava seu restaurante Santinho. Deu tão certo que agora a mudança está oficializada. Na Bahia, inaugurou em Trancoso, um espaço para experiências gourmet. E ao lado, a partir do segundo semestre, abre o que é a “semente de um projeto de hospitalidade”.
Deu ainda mais musculatura ao braço social com o Instituto Capim Santo (criado em 2009), que chegou a distribuir mais de 200 mil marmitas à população de rua nos últimos dois anos, quando também foi inaugurada a cozinha-escola na Rocinha (RJ). Este ano, a previsão é distribuir 180 mil marmitas. Desde 2009, mais de 1500 pessoas foram capacitadas nas cozinhas-escolas localizadas em Itacaré e Trancoso (BA), São Paulo e Barra do Sahy (SP).
Como se não bastasse, ainda este ano a chef lança uma linha de pratos prontos a serem vendidos em tamanho família só pela plataforma digital, o “Capim Santo para Casa”. Com todas estas frentes, a chef já conseguiu recontratar “quase todo o quadro de funcionários original”.
“Tenho a sorte de ter uma estrutura muito boa por trás, com dez chefs de cozinha, alguns comigo há mais de 15 anos, minha sócia Adriana Drigo, em São Paulo e o Junior Alexandre, que está comigo há mais de 15 anos e tem participação na sociedade do buffet, no Rio”, diz ela.
Na casa Capim Santo ela conta com um novo sócio, o empresário Nelson Soto. Com capacidade para receber até 150 pessoas e função dupla, o espaço de eventos no Tomie Ohtake ocupará uma área de cerca de 400 metros quadrados onde antes funcionava uma das unidades do restaurante Santinho ( o nome deve batizar um novo modelo de negócio em estudo, um café).
Durante o almoço, será uma Comidaria à la carte, com mix de pratos brasileiros e toque japonês. E à noite, receberá festas de aniversários e casamentos a eventos corporativos. “Sempre quis ter uma casa de festas. Então decidi adaptar uma estrutura que já existia para isso”, conta a chef, que tem concessão para uso do espaço do Instituto por mais 10 anos.
Inspirado em uma floricultura-restaurante visitada em Tóquio, o novo layout assinado pelo amigo e arquiteto Paulo Alves contará com mesas-terrários que trarão mais cor e modernidade ao espaço cinzento. “Já temos o primeiro evento agendado para dia 11 de junho”, revela.
No segundo semestre, abre oficialmente para o público os primeiros quatro quartos de seu projeto de hotelaria, o Alma Ninho, em Trancoso. Anexo ao espaço de eventos Casa Alma -inaugurado em dezembro, onde a cada mês um chef convidado comanda às luas cheias um jantar especial para até 12 convidados -, ele foi construído para ser um “playgroud para adulto que tem alma de criança. Bem com a minha cara”, diz Morena.
Isso significa ter de uma supercozinha equipada com eletrodomésticos Viking e panelas Le Creuset a um escorregador que cai diretamente em um ofurô, uma sala de pilates, rooftop com mirante para ver as estrelas, sauna, horta orgânica. “É para ser uma casa de experiências, como a do (chef Massimo) Bottura (nos arredores de Modena, batizada Casa Maria Luigia)”, explica.
O espaço está sendo testado apenas por convidados desde janeiro, mas o próximo passo para a expansão do projeto já foi dado em outro terreno próximo ao rio, na região de mata. Ali, ela e o marido, o escritor e publisher da editora Taschen, Julius Wiedemann, se preparam para construir outros bangalôs e “ninhos” em 2023, seguindo os mesmos passos de seus pais que construíram a pousada Capim Santo, em Trancoso, em 1987.
O grande mistério é como ela ainda consegue espaço na agenda para divulgar a culinária brasileira no mundo junto ao Itamaraty e para trabalhar em mais dois livros – “Maniba” e “Devorações”, ainda sem editora. Saiba mais detalhes da sobre a volta por cima da chef na entrevista a seguir:
Quando a pandemia começou, você estava a 15 dias de inaugurar o que seria a nova casa do restaurante Capim Santo no bairro paulistano do Jardins. Por que cancelar e não congelar o projeto?
Depois de quase 15 anos íamos sair da rua Ministro Rocha Azevedo, para um salão de 140 lugares na Rua Padre João Manuel (o terreno dará origem a um prédio). Mas, faltando pouco para finalizar a obra, fechou tudo por causa da pandemia. Decidimos devolver o imóvel para ter dinheiro em caixa e, com dor no coração, dispensar formalmente mais de 300 dos 500 funcionários do grupo que estavam ligados à cozinha central e ao serviço de buffet (que chegava a atender mais de 10 eventos no mesmo dia), do que arriscar entrar no vermelho. Foi um dos momentos mais difíceis da minha vida.
Em setembro de 2020 você já começou a operar o Capim Santo no terraço e jardim do Museu da Casa Brasileira, onde antes ficava uma das três unidades do Santinho. Era para ser temporário?
Nosso plano B virou nosso plano A e foi maravilhoso. Às vezes a solução está no seu nariz e você não enxerga. Ser ao ar-livre, bem centralizado e com espaço para até 160 lugares debaixo das árvores permitiu que eu praticamente dobrasse a operação. Aos fins de semana, atendo mais de 900 pessoas lá. Quinhentas só aos domingos (quando o tíquete médio sobre de R$ 120 para R$ 180 por pessoa).
Quase ao mesmo tempo assumiu uma operação no hospital Sírio-Libanês. Como foi isso?
Foi uma loucura. No auge da pandemia, eu com uma bebê pequena e pegando um contrato de cinco anos para trabalhar em hospital. Minha mãe quase enlouqueceu. Mas a ideia era sair de uma cozinha corporativa para levar algo mais artesanal, acolhedor, para que as pessoas pudessem nutrir corpo e alma com carinho. Ali, além do salão de 160 lugares, com buffet e à la carte que funciona de manhã à noite, fazemos room service para atender os acompanhantes. Você pode pedir de uma quiche com salada (R$ 60), uma massa ou hommus de feijão verde que lembra a minha avó libanesa, a um camarão ou bife ancho (R$ 150). Temos um contrato de cinco anos lá. O movimento está aumentando gradualmente. Fazíamos cerca de 120 pessoas por dia. Agora estamos chegando a 170.
Essa cozinha saudável e afetiva também é a base do trabalho que você faz em escolas. Poderia contar mais como funciona essa frente?
A ideia vem desde 2017, quando estava morando em Bali e minha filha estudando na Green School, e a diretora do colégio São Luís começou a me seguir pelo Instagram. Eles já tinham o projeto de mudar a escola da avenida Paulista para próximo ao Ibirapuera e queriam que a nova unidade tivesse essa preocupação com a alimentação dos alunos. Aí um conselheiro do Instituto Capim Santo (voltado à formação de jovens carentes) fez a ponte e começamos a desenhar juntas o projeto da cozinha da nova escola. Entramos no fim de 2019 e em março fechou tudo, para voltamos parcialmente só no fim do ano. Nesse período, como o estoque das câmaras frias estavam cheios e tínhamos muito espaço livre, com caldeiras e fornos combinados, fizemos dali a sede para o projeto Capim Solidário, pelo qual distribuímos mais de 200 mil marmitas.
Hoje você atende quantas crianças dentro da escola? Como é o modelo de negócio?
São cerca de 4 mil crianças por dia no São Luís e na Beacon, onde entrei no ano passado. Eu cuido de toda a operação, da montagem da cozinha, compras, nutricionista, desenvolvimento de cardápio ao serviço. Temos comitês de pais e alunos por faixa etária que se reúnem a cada três meses para falar sobre o cardápio e possibilidades de adaptação, mas temos alguns pilares fundamentais: segurança alimentar e rastreabilidade dos produtos, fazer uma comida saudável, saborosa, bonita e afetiva, e ser viável tanto operacional quanto financeiramente. Porque uma coisa é fazer pequenas porções, em casa, e outra para atender mais de mil pessoas. Em 2016 também fiz um trabalho com a Global Me onde desenvolvi apenas o cardápio e fiz o treinamento das cozinheiras. Como era uma estrutura menor eles ficaram responsáveis pela operação em si.
Quanto custa um cardápio Morena Leite nessas operações?
Depende muito do contrato. Da duração, de quantas pessoas vou atender por dia, se é só almoço ou tem lanches de manhã e à tarde, para quem ficam as contas de água e luz. Mas vai variar de R$ 21 a R$ 35 o almoço, e R$ 12 a R$ 15 o lanche. É diferente de um restaurante como o do Sírio, por exemplo, que abro e não sei quantas pessoas vou atender. Nas escolas consigo ter uma previsibilidade dos custos fixos.
Quanto esse tipo de operação responde hoje no faturamento do grupo?
Está muito equilibrado entre os restaurantes, as escolas e os eventos, que agora estão voltando. (Este ano ela já fez um camarote na Sapucaí, a SP-Arte, e se prepara para atender no Rock in Rio Lisboa e RJ, e Cirque du Soleil). Mas ainda dá para crescer bastante nesses dois últimos braços. Hoje minha estrutura suporta atender até 10 escolas de forma bem ativa. Quero ser como um polvo.
A produção de todas essas operações é centralizada?
Ficamos um tempo no espaço do Tomie Ohtake, mas esse mês nos mudamos para dois imóveis no Pacaembu. Em um fica a toda estrutura para eventos (louças e uniformes) e no outro a cozinha quente, padaria, confeitaria, açougue e garde manger. De lá vamos começar a soltar também os pratos do Capim Santo para Casa, que é um outro projeto que está sendo estruturado para atender refeições em família e pequenos eventos de 10 a 20 pessoas que não justifiquem contratar toda a estrutura do buffet. Será uma linha de produtos tipo rotisserie, que mesclará pratos que já temos com outros específicos. A venda será totalmente online.
No fim do ano você ainda abriu a Casa Alma, em Trancoso, em parceria com marcas como Le Creuset, Florense, Brentwood, Viking. Era para ser um projeto temporário também?
Fiz essa casa durante a pandemia para poder acolher experiências gastronômicas. Não queria ter um restaurante aberto todos os dias lá. É uma cozinha gourmet para eventos, onde entro para testar ingredientes e receber amigos. Ela abre uma vez por mês, sempre às luas cheias, para jantares especiais com chefs amigos (Felipe Schaedle, Thomas Troisgros e Paulo Machado são alguns dos que já estiveram presentes) ou pode ser alugada para pré-weddings e aniversários por R$ 10 mil para até 12 pessoas ou R$ 25 mil para até 30, já incluso um chef residente, comida e bebida alcoólica.
A Alma Ninho faz parte dessa estrutura?
Ela ainda é um anexo, um projeto embrião que nasceu da vontade de fazer um carinho nas pessoas. Mas não é um projeto comercial ainda. Estamos recebendo amigos para testes, por enquanto e ainda não decidimos se vamos alugar os quartos como conjunto ou separadamente a partir do segundo semestre. Mas é um projeto que vai crescer para hospitalidade. A gente (ela e marido) comprou um terreno na beira do rio, na mata, para construir mais bangalôs e ninhos no próximo ano.