No começo de 2020, a cidade de Wuhan, marco no desenvolvimento chinês, virou notícia de destaque em todo o mundo não por ser uma metrópole opulenta de migrantes recentes de toda a China – e imigrantes de vários países da maioria dos continentes.
Naquele mês de janeiro, metade da população deixaria o lugar para celebrar o ano novo chinês. Ninguém imaginava, no entanto, que seus moradores transportassem uma bomba em seus organismos. Por isso, o Sars-CoV-2 levou apenas algumas semanas para se espalhar pela China afora e por boa parte do resto do planeta.
Um ano depois, a população mundial vivia em estado de choque, sem conseguir dimensionar que o pior ainda estava por vir, nos meses seguintes, mesmo com o início da vacinação nos países mais ricos.
“No registro histórico do capitalismo moderno, nunca houve um momento em que cerca de 95% das economias mundiais sofreram uma contração simultânea do PIB per capita como ocorreu na primeira metade de 2020. Mais de 3 bilhões de adultos foram dispensados de seus empregos ou arranjaram um jeito de trabalhar em casa. Cerca de 1,6 bilhão de jovens tiveram sua educação escolar interrompida”, escreve o historiador britânico Adam Tooze, professor da Universidade Columbia e ex-Cambridge e Yale.
À parte da ruptura sem precedentes da vida familiar, com todos presos dentro de casa, prossegue Tooze, o Banco Mundial estimou que a perda de rendimentos ao longo da vida por conta de capital humano afetado com a pandemia pode chegar a US$ 10 trilhões. “O fato de o mundo, coletivamente, haver decidido essa paralisação torna essa recessão inteiramente diferente de qualquer outra que a precedeu”, escreve.
Tooze está lançando no Brasil um livro pela Editora Todavia bastante recomendado por estudiosos do tema: Portas fechadas: Como a Covid abalou a economia mundial. Autor de duas obras de referência – O preço da destruição: Construção e ruína da economia alemã (2006) e Crashed: How a Decade of Financial Crises Changed the World (2018), sobre a crise econômica global de 2008 –, ele destaca que se houvesse uma palavra para resumir a experiência mundial de 2020-2021, seria "descrença".
O perigo acarretado pela Covid-19, acredita o historiador, subverteu a rotina diária de praticamente todo o planeta, paralisou grande parte da vida pública, fechou escolas, separou famílias, interrompeu viagens domésticas e internacionais e derrubou a economia mundial. “Para conter o desmoronamento, o apoio governamental às famílias, empresas e mercados assumiu dimensões nunca vistas fora de tempos de guerra.”
Não apenas foi, de longe, “a recessão econômica mais aguda desde a Segunda Guerra Mundial, como também qualitativamente única”. Nunca houvera uma decisão coletiva dessas dimensões, ainda que irregular e incerta, para paralisar amplas partes da economia mundial.
Foi, como definiu o Fundo Monetário Internacional (FMI), "uma crise como nenhuma outra". O pânico que ainda se prolonga nestes quase dois anos causou estresse, depressão e sofrimento mental.
Para Tooze, a experiência da crise depende da localização e da nacionalidade do indivíduo. No Reino Unido e nos Estados Unidos, por exemplo, 2020 foi vivenciado não apenas como uma emergência de saúde pública, ou uma recessão de primeira grandeza, mas como a culminância de um período de crise nacional crescente, sintetizada nas palavras "Trump" e "Brexit".
De forma bastante oportuna, o autor analisa as mudanças ainda em curso, mostra as diferentes respostas dos governos aos acontecimentos na busca desesperada pela volta da normalidade. O mais assustador em seu relato, porém, é que havia tensão no ar no ano anterior que apontavam para um ano complicado, cujo contexto piorou os efeitos da pandemia.
Assim, o vírus foi o gatilho de uma crise devastadora e acabou por jogar o mundo de cabeça para baixo e provocou a mudança de uma série de valores sobre o modo de governar e conduzir políticas econômicas. Tooze destaca que antes mesmo de se saber o que atingiria a humanidade, havia todas as razões para pensar que 2020 pudesse ser um ano tumultuoso.
“O conflito entre a China e os Estados Unidos estava fervendo. Uma ‘nova Guerra Fria’ estava no ar. O crescimento global ficara seriamente mais lento em 2019.” Nesse contexto, o FMI se preocupava com o efeito desestabilizador que a tensão geopolítica pudesse ter sobre uma economia abarrotada de dívidas. “Os economistas engendravam novos indicadores estatísticos para mensurar a incerteza que estava afligindo os investimentos.”
Segundo o autor, os dados sugeriam que a origem do problema estava na Casa Branca, pois o presidente Trump conseguira “se converter numa obsessão global insalubre”. Estava empenhado em sua reeleição em novembro de 2020, o que acabaria não acontecendo, e parecia inclinado a desacreditar o confiável processo eleitoral mesmo que resultasse em vitória - o que, de fato, tentou.
Tooze destaca que antes mesmo de se saber o que atingiria a humanidade, havia todas as razões para pensar que 2020 pudesse ser um ano tumultuoso
À parte as preocupações a respeito de Washington, o tempo das intermináveis negociações do Brexit estava se esgotando. Ainda mais alarmante para a Europa, no início de 2020, era a perspectiva de uma nova crise dos refugiados.
O único meio de remediar isso era incrementar o investimento e o crescimento nos países em desenvolvimento. O fluxo de capital, porém, era não só instável como desigual. No final de 2019, metade dos tomadores de empréstimos de mais baixa renda na África Subsaariana já estava se aproximando do sobre-endividamento.
Acarretava mais pressão ambiental – o novo ano seria decisivo na política em relação ao clima. Se Trump vencesse, o que no início do ano parecia uma possibilidade viável, o futuro do planeta estaria em perigo.
A sensação difusa de risco e ansiedade que pairava sobre a economia mundial era uma inversão notável, desde que o evidente triunfo do Ocidente na Guerra Fria, a ascensão do mercado financeiro, os milagres da tecnologia da informação e a ampliação da órbita do crescimento econômico nos anos de 1990 pareciam juntar-se para cimentar a economia capitalista como a guia onipotente da história moderna.
Todas essas crises tinham sido superadas, mas mediante gastos governamentais e intervenções de bancos centrais que abalavam preceitos firmemente arraigados sobre "governo enxuto" e bancos centrais "independentes".
As crises tinham sido ocasionadas pela especulação. A escala das intervenções necessárias para estabilizá-las tinha sido histórica. Enquanto isso, a ascensão espetacular da China roubou a inocência do crescimento econômico em outro sentido e colocou a globalização e o neoliberalismo em questionamento.
Tooze afirma que não havia mais a certeza de que os grandes deuses do crescimento estivessem do lado do Ocidente. As mudanças climáticas, que em outros tempos haviam sido uma preocupação apenas dos movimentos ambientalistas, tornaram-se um emblema de um desequilíbrio mais amplo entre natureza e humanidade.
E veio o vírus. “Ao espalhar-se pelo planeta com uma velocidade vertiginosa, a Covid-i9 ceifou milhões de vidas, paralisou economias, disseminou o medo e alterou profundamente o cotidiano dos indivíduos”, escreve Tooze.
O historiador destaca que, por mais que os cientistas alertassem há décadas da possibilidade do surgimento de novas doenças e epidemias, o mundo nunca se preparou para isso, porque não levou essa hipótese a sério. E anda totalmente perdido, sem saber que rumo tomar, em meio ao surgimento de novas variantes.