O torcedor brasileiro pode — e deve — confiar que o treinador italiano Carlo Ancelotti, de 65 anos, vai fazer de tudo para o Brasil vencer a Copa do Mundo de futebol de 2026. E não apenas porque ele é um dos técnicos mais competentes e vitoriosos de todos os tempos: o título de campeão mundial é sua obstinação, o único que falta em seu currículo.
Essa certeza surge quando se lê o excelente O sonho – Quebrando regras de vitórias na Champions League, que chega às livrarias brasileiras neste mês de dezembro pela editora Planeta. Em pouco mais de 250 páginas, a obra mergulha na mente do maior treinador vivo da atualidade e traz a visão única de um grande estrategista em ação.
Ancelotti venceu cinco vezes a Champions League, a copa europeia de clubes, disputada pela elite do futebol mundial: duas à frente do Milan, em 2003 e 2007, e três com o Real Madrid, em 2014, 2022 e 2024 — sem contar as duas ocasiões em que se sagrou campeão como meio-campo do Milan, em 1989 e 1990. Atrás dele, empatados com três taças cada um, estão o inglês Bob Paisley, nos anos 1970 e 1980, e, mais recentemente, o espanhol Pep Guardiola.
Em O sonho, o italiano vai além dos relatos detalhados de seus desafios. Com sensibilidade, empatia e emoção, mistura memórias futebolísticas com lições de gestão e liderança: seu método de trabalho, seus mentores, seus desafios, as desavenças e pressões sofridas ao longo da carreira como técnico de alguns dos maiores times da história — além do Milan e do Real Madrid, ele treinou Paris Saint-Germain, Chelsea, Juventus, Parma e Bayern de Munique, entre outros.
Escrita em parceria com o jornalista esportivo inglês Chris Brady, a autobiografia não é apenas sobre glórias. Ancelotti conta a história de todas as ocasiões — muito mais numerosas — em que o sonho lhe escapou por entre os dedos. “O futebol não é tão distante da vida real. A verdade é que, na maior parte do tempo, a gente não vence. E espero ser humilde o bastante para reconhecer que a derrota também pode ser uma grande professora", escreve.
Nascido em Reggiolo, na Itália, antes de se tornar treinador, Ancelotti atuou como meio-campo na Roma e no Milan, além de ter jogado na seleção italiana na Copa do Mundo de 1990. Ele começa O sonho com um relato maravilhoso.
Quando tinha 15 anos, em 1975, treinava como centroavante juvenil do Parma. Foi chamado para participar de uma partida de futebol sui generis. Os diretores de cinema Bernardo Bertolucci e Pier Paolo Pasolini estavam brigados. Suas equipes de produção organizaram um jogo de várzea para fazer as pazes entre eles.
Como a equipe de Bertolucci não tinha número suficiente de jogadores, alguém teve a ideia de completar com garotos das proximidades. E foi assim que Ancelloti ajudou o time do diretor de O Último Tango em Paris a vencer e recebeu dele os agradecimentos. “Para ser sincero, os nomes dos diretores não significavam muita coisa para mim. Mas eu não ligava. Era uma partida e eu só queria jogar. O futebol já era a minha vida”, conta.
Alguns percalços
Um dos momentos mais duros de sua carreira foi a demissão “impiedosa” no Bayern de Munique — a mais implacável, autoritária e irracional, ele define. Mais do que a derrota do time alemão por 3 a 0 para o PSG, o técnico aponta interferências da diretoria e da estrutura de poder como fatores decisivos para a sua saída. No Bayern, lembra, ele tinha de prestar contas a “várias pessoas importantes ao mesmo tempo”, como aos acionistas e a ex-jogadores influentes.
O foco da autobiografia não é o seu novo desafio profissional, mas Ancelotti acaba reforçando sua “conexão” com o Brasil ao relembrar experiências vividas com cerca de 50 brasileiros com quem atuou e liderou.

O técnico recorda, por exemplo, o atrito com Rivaldo no início da passagem do pernambucano pelo Milan. O atacante, recém-campeão do mundo de 2002, reagiu mal ao ser colocado no banco — algo inédito para ele.
"Tudo bem”, eu disse a ele, “sempre há uma primeira vez, e agora é o momento certo para ser a primeira”, escreve Ancelotti. “Eu era o chefe e tive que lembrá-lo disso.” Indignado, o jogador simplesmente se levantou e foi para casa. Os dois acabaram se entendendo e Rivaldo foi “peça importante na conquista da Champions, em 2003”.
O desentendimento mais grave ocorreu com Leonardo, lateral-esquerdo na Copa de 1994 e amigo antigo de Ancelotti, dos tempos em que estiveram juntos no Milan, no final dos anos 1990. Em meados dos anos 2010, o carioca era diretor executivo do PSG e, na partida contra o Porto, mesmo com o time já classificado para a Champions, deu o ultimato: se não vencesse, o técnico italiano seria demitido.
A vitória veio, mas o desgaste tornou a permanência de Ancelotti no clube insustentável. Pouco depois, ele deixou o clube francês, encerrando também a relação com Leonardo.
"Que desafio maravilhoso"
No livro, o técnico compartilha os bastidores das experiências com outros vários jogadores brasileiros. Alguns deles, inclusive, chegaram a influenciar sua carreira.
Dos anos em que jogou pela Roma, entre 1979 e 1985, Ancelotti conta: “O time da temporada 1983-1984 tinha dois brasileiros que me marcaram muito: Toninho Cerezo, que era mais guerreiro e um motor incansável, além de Paulo Roberto Falcão, que era brilhante na armação e um verdadeiro líder em campo. Quando ele chegou, não entendia por que treinávamos tanto sem a bola (...) foi na Roma que, pela primeira vez, fui influenciado diretamente por um gênio brasileiro”.
O meio-campo Kaká foi outro personagem marcante. “Quando vi Kaká pela primeira vez, em 2003, bem-vestido em sua chegada a Milão, ele parecia um estudante universitário, de óculos. Mas quando o vi jogar fiquei sem palavras”, conta o autor.
“No seu primeiro treino, ele enfrentou Gattuso e depois Nesta, e nenhum dos dois conseguiu pará-lo. Tiramos seus óculos de estudante, colocamos um uniforme de futebol, e ele se tornou um fenômeno. Era como o Superman saindo de uma cabine telefônica.”
Ele cita ainda passagens com Ronaldo, Marcelo, Cafu, Casemiro, Richarlison e, mais recentemente, Rodrygo, Militão, Endrick e Vinícius Jr .“O sonho de todo brasileiro é ver o Brasil campeão de novo. Agora esse é o meu sonho também, e tentarei realizá-lo dando tudo de mim”, diz o italiano.
O mundial, comenta, é diferente da Champions por envolver a paixão de todo um país — “e por isso, sempre chamou minha atenção”. Quando esse país é o Brasil, único pentacampeão da FIFA, a responsabilidade aumenta. Como define Ancelotti, “que desafio maravilhoso — vencer a Copa do Mundo com o Brasil”.