Nova York - The New Yorker será uma reflexão em palavra e imagem sobre a vida metropolitana. Será humana. Seu teor geral será de alegria, perspicácia e sátira, mas será mais do que brincalhona. Em comparação com os jornais, a revista será interpretativa, em vez de estenográfica.”

Assim começam as duas páginas que imprimem a missão da revista semanal criada em 1925 pelo casal de jornalistas Howard Ross e Jane Grant.  O documento é uma das peças emolduradas na mostra comemorativa A Century of The New Yorker, celebrando os 100 anos da New Yorker, em cartaz até 21 de fevereiro de 2026, na majestosa sede da New York Public Library, em Manhattan.

Nenhum outro lugar faria mais sentido: a biblioteca guarda mais de 2,6 mil caixas de artigos, cartas, charges e ilustrações originais das 5.057 edições publicadas ao longo do século. Por ano, a revista produz cerca de 47 volumes, e qualquer nova-iorquino da gema sabe que eles se empilham pelos cantos da casa, dado que os textos são maiores do que o tempo para ler tudo.

Além da exposição, o aniversário ganhou um recém-lançado documentário na Netflix, em que os cineastas Marshall Curry e Judd Apatow se infiltraram na redação por meses, participando de decisões editoriais, reportagens, checagem e entrevistando as estrelas por trás da revista mais emblemática da cidade — ou mesmo do país.

“Em uma mesma semana, a The New Yorker publica um perfil de quinze mil palavras sobre um músico ou um relato de nove mil palavras do sul do Líbano, com charges espalhadas pelo texto. Nunca há uma fotografia na capa, alguém de biquíni ou alguma estrela de cinema. E mesmo assim, funciona”, diz o editor-chefe David Remnick no filme. “O fato de este formato existir e prosperar é impressionante.  E insisto: continuará prosperando não por um século, mas por dois ou três.”

Aos 67 anos, e com uma carreira que inclui livros e um Pulitzer Prize, Remnick ocupa o cargo desde 1998, sendo o quinto da linhagem desde a criação da revista.

Ele foi fisgado do jornal The Washington Post pela então editora Tina Brown, na época contratada para revigorar a revista: além de sangue novo, ela trouxe novidades como fotografia para as páginas.

Mas, nos primeiros anos, a The New Yorker não era tudo isso. Tanto que, em 1928, um dos escritores mais proeminentes da revista, E.B. White ensaiou abandonar o barco.

Logo, recebeu um telegrama (visto nesta mostra) do fundador que dizia: “Este é um movimento, e você não pode se demitir de um movimento”. E.B. White ficou e tornou-se um dos mais respeitados escritores do país. E em 1949 publicaria o lendário ensaio Here is New York (não para a revista), além de um manual de escrita respeitado até hoje e o livro infantil Charlotte's Web.

"Hiroshima"

Ao longo dos cem anos, a The New Yorker foi crescendo em relevância por nunca abrir mão do princípio de recrutar os melhores. Na mostra, fica claro como a qualidade e a meticulosidade vêm em primeiro lugar e como a publicação passou, gradualmente, a acolher a diversidade, tanto em suas coberturas quanto na contratação de escritores.

Na década de 1940, uma de suas coberturas fez a revista finalmente ganhar o devido reconhecimento jornalístico ao tocar numa grande ferida: Hiroshima.

Na época, a mídia nacional não divulgava os efeitos da bomba, mas o jornalista John Hersey foi até lá e trouxe a história de seis personagens que viveram o terror. Em 31 de agosto de 1946, por 15 centavos a cópia, a The New Yorker chegava às bancas com o título: Hiroshima: Esta edição é inteiramente dedicada a contar como uma bomba atômica destruiu uma cidade. A ilustração de capa mostrava uma comunidade (antes) feliz. Albert Einstein encomendou mil exemplares.

Os temas são decididos em reuniões de pauta, e depois que o texto é entregue, ao departamento de checagem de fatos, onde 27 heróis conferem cada detalhe, telefonando para fontes, lendo arquivos, verificando datas — “um processo comparado a uma colonoscopia”, como brincam no documentário. Depois disso, o texto passa pelo pente-fino gramatical, em que nenhuma vírgula mal colocada ou palavra redundante passa despercebida.

Hoje, a The New Yorker custa US$ 9,99 e cobra assinatura para ser lida online (US$ 52, no primeiro ano, e US$ 130 anuais, a partir do segundo).  Em sua fundação, Howard Ross, que na época conseguiu investimento para dar o pontapé inicial, disse que a revista seria dedicada a “um público sofisticado de Manhattan, e não para a velhinha de Dubuque” (uma cidade minúscula em Iowa).

A exposição na New York Public Library vai até 21 de fevereiro de 2026 (Foto: nypl.org)

“Fazer a capa da 'The New Yorker' já seria um marco na minha carreira. Mas participar da edição centenária foi além do imaginável”, comemora a brasileira Camila Rosa (Foto: Arquivo pessoal)

O primeiro número da "The New Yorker" chegou às bancas em 21 de fevereiro de 1925, com capa assinada por Rea Irvin, primeiro editor de arte da revista. O personagem se tornou virou mascote da revista (Foto: nypl.org)

Os jornalistas Jane Grant e Harold Ross se conheceram na França, durante a Primeira Guerra Mundial. Quando voltaram para Nova York, depois do casamento, lançaram a "The New Yorker" (Foto: nypl.org)

Em 31 de agosto de 1946, a revista publicou o texto “Hiroshima”, de John Hersey. Ele foi um dos primeiros repórteres americanos a chegar à cidade japonesa depois do lançamento da bomba atômica pelos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial (Foto: nypl.org)

Na apresentação do projeto, Harold Ross anunciou que a revista seria publicada para "um público sofisticado de Manhattan, e não para a velhinha de Dubuque”, referindo-se à cidade minúscula em Iowa (Foto: nypl.org)

As charges da "The New Yorker" são uma de suas marcas registradas. Publicada em 1993, a ilustração de Peter Steiner está entre as mais reproduzidas da revista: "Na internet, ninguém sabe que você é um cachorro” (Foto: wikimedia.org)

Em 1942, menos de um ano após a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, para a semana do Halloween, Rea Irvin desenhou Adolf Hitler como uma bruxa. Normalmente, Harold Ross evitava capas com figuras públicas; a imagem do Fuhrer empoleirado em uma vassoura foi uma rara exceção (Foto: nypl.org)

Os textos da revista costumam ser assinados por grandes nomes do jornalismo e da literatura. Truman Capote foi um deles. Pouco mais de um ano antes de ser lançado em livro, "A sangue frio" foi publicado em quatro capítulos na revista. O texto passou pela revisão de diversos editores, incluindo William Shawn, chefe de redação de 1952 a 1987. As anotações no manuscrito são dele (Foto: nypl.org)

Uma das capas mais emblemáticas traz a ilustração “Vista do Mundo a partir da 9ª Avenida”, para a edição de 29 de março de 1976, de autoria de Saul Steinberg. O artista húngaro chegou à cidade em 1942, fugindo do nazismo. Um dos colaboradores mais frequentes, ele assinou 86 capas (Foto: nypl.org)

Ross, que sequer terminou a escola e nasceu numa cidade mineradora do Colorado, escolheu amigos a dedo: ele sabia quem estava apto a desenvolver artigos e charges irreverentes sobre a sociedade e a cultura locais.

Além disso, ele trouxe Rea Irving, o designer que criou a tipografia e a primeira capa: o icônico personagem olhando uma borboleta por meio de um monóculo.  A ilustração original, também à mostra na exposição, é uma sátira ao tom da revista: Eustace é um nome sofisticado e Tilley, um sobrenome mundano.

Originalmente usado como pseudônimo em textos humorísticos, Eustace Tilley tornou-se o mascote da publicação, com releituras a cada edição de aniversário: novos personagens, na mesma posição de perfil, olhando para a borboleta.

Uma capa barsileira

“Até escolhermos a capa, não sabemos qual será a personalidade da edição. A capa precisa falar ao momento, mas também ser uma peça de arte atemporal que possa ser emoldurada e pendurada na parede”, diz a diretora de arte Françoise Mouly no documentário.

Há 30 anos no cargo, foi ela a responsável por capas históricas, como as duas torres gêmeas em preto depois de 11 de setembro e a capa comemorativa dos 100 anos, que premiou os leitores com seis opções: além da republicação da página original, ela selecionou a releitura de Eustace feita por cinco artistas distintos.

Entre eles, uma surpresa: o perfil de uma mulher de traços latinos, ilustrada pela brasileira Camila Rosa, de 37 anos, nascida em Joinville e radicada no Brooklyn.

“Em janeiro de 2023, Françoise entrou em contato comigo sobre uma possível capa comemorativa dos 98 anos. Ela pediu ideias voltadas às releituras da capa original de 1925”, diz Camila ao NeoFeed.

“Com esta proposta, passei a entender a tradição e o peso desse personagem. Sempre quis ilustrar a revista, mas nunca tinha mergulhado nesse universo. Porque, sim, trata-se de um universo que faz parte da vida do novo-iorquino", complementa.

Camila enviou dois esboços, incluindo o da mulher latina. Mas, na época, a ilustração não foi publicada. De qualquer forma, as submissões ficam num banco de ideias, constantemente revisitado.

Em novembro passado, Françoise procurou a brasileira novamente, desta vez, pedindo uma versão colorida e finalizada do esboço submetido dois anos antes.

“Apresentei algumas opções de cores e aguardei a decisão. Há um tempo de espera porque tanto as capas quanto as matérias não são necessariamente planejadas para a próxima edição. Pode levar anos”, explica.

A ligação veio em janeiro passado, quando Françoise anunciou que a capa de Camila sairia na edição comemorativa dos 100 anos, logo em fevereiro.

“Fazer a capa da The New Yorker já seria um marco na minha carreira. Mas participar da edição centenária foi além do imaginável”, afirma ela.

“Meu trabalho ganhou uma outra dimensão, inclusive pela relevância de levar este tema à capa em meio ao atual contexto político do país”, completa.