O filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903) dizia que “a liberdade de cada um termina onde começa a liberdade do outro". Um dos pilares do direito desde a antiguidade, o jurista romano Eneu Domício Ulpiano (150-223 d.C.) estabeleceu a base do direito moderno com a frase “viver honestamente, dar a cada um o que é seu e a ninguém ofender”.

Desde a década passada, porém, com o avanço de correntes de pensamento de extrema-direita por todo o planeta, o conceito de liberdade foi apropriado, desvirtuado e manipulado na defesa de um tipo exclusivista desse direito: “a minha”, “a nossa” liberdade, que exclui a do outro.

No Brasil, por exemplo, mais intensamente nos últimos quatro anos, fake news e postagens ofensivas à honra de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) são defendidas como “liberdade de expressão”, enquanto a unanimidade dos juristas aponta o contrário. Trata-se de práticas criminosas tipificadas no Código Penal como calúnia, injúria ou difamação.

Durante o primeiro ano da pandemia, por exemplo, de diversas formas, o sentido de liberdade foi reivindicado quando a proteção da maioria contra o risco de contágio foi confrontada pela “liberdade” de se abrir o comércio para não comprometer a economia do país.

Embora o foco seja a vida política, econômica, social e cultural norte-americana, porém dentro de um contexto universal, o livro "Sobre a liberdade – Quatro canções sobre cuidado e repressão", da poeta, memorialista, teórica, aclamada ensaísta e crítica cultural Maggie Nelson, de apenas 49 anos de idade, que sai no Brasil este mês, pela editora Companhia das Letras, traz uma reflexão oportuna a respeito das diferentes formas de explorar a “liberdade” hoje.

Sua leitura traz múltiplas possibilidades de reflexão a respeito da compreensão das incoerências dos significados de liberdade – ou deturpações, muitas vezes. Em meio a uma infinidade de pontos tratados por ela, está como é viver “em um mundo com opressão esmagadora, ao lado de pessoas com crenças cruéis e violentas, sem ceder ao desespero ou à violência”. Em meio aos direitos a autonomia, justiça e bem-estar, questiona ela, a noção ampla e cultuada de liberdade está chegando ao fim? É possível. Ou seria exagero?

Sua leitura traz múltiplas possibilidades de reflexão a respeito da compreensão das incoerências dos significados de liberdade

Maggie Nelson parte das complexidades do conceito de liberdade para aprofundar quatro temas fundamentais da sociedade mundial nas últimas seis décadas, desde a revolução pelos direitos civis (mulheres, negros e homossexuais) e a revolução sexual; arte ("o desejo de buscar e valorizar o cuidado em tudo, inclusive na arte, faz sentido”); sexo (sobre o “otimismo sexual”); drogas (a liberdade de consumir); e clima (a crise e a extinção inevitável das espécies).

Para cada tema, um longo ensaio em que costura ideias e questionamentos, com ênfase nos constantes conflitos entre libertação e limitação. Desse modo, debate conceitos modernos de liberdade pessoal na cultura ocidental. As diferentes ideologias que tratam do tema e seu controle pela restrição merece destaque nessa discussão.

A partir da teoria crítica à cultura pop, às intimidades e às trocas simples da vida cotidiana, ela sugere como se deve ou se pode pensar, experimentar ou falar sobre liberdade de maneira sensível nos dias que correm – é importante destacar que ela começou o livro durante o governo de Donald Trump.

Segundo ela, seu interesse permanente está nas “práticas de liberdade” contínuas pelas quais todos negociam a interrelação uns com os outros, com todo o cuidado e constrangimento que isso implica, “ao mesmo tempo em que aceitamos a diferença e o conflito como parte integrante de nossa comunhão”.

Interessa a Maggie Nelson que é uma prática de liberdade pensar publicamente sobre os nós de cada cultura, “dos recentes debates do mundo da arte aos turbulentos legados da liberação sexual, dos dolorosos paradoxos do vício à atração do desespero diante da crise climática”.

Quando pensou em escrever um livro sobre liberdade, Maggie Nelson chegou a duvidar sobre o quanto de interesse o tema poderia despertar e atrair leitores. Ou que poderia não ser mais necessário dar tanta ênfase ao assunto.

“Dá para pensar em uma palavra mais cansada, imprecisa e carregada?”, escreve, na introdução. “Eu costumava me importar com a liberdade, mas agora me preocupo mais com o amor”, uma conhecida lhe disse. Outra deu abordagem distinta: “A liberdade parece um código de guerra corrupto e esvaziado, uma exportação comercial, algo que um patriarca poderia ‘conceder’ ou ‘anular’”.

Quando pensou em escrever um livro sobre liberdade, Maggie Nelson chegou a duvidar sobre o quanto de interesse o tema poderia despertar. “Dá para pensar em uma palavra mais cansada, imprecisa e carregada?”

Ouviu ainda que era “um termo branco” para ser tratado. Por um tempo, concordou com todas essas observações. “Por que não reconhecer que o longo estrelato da liberdade pode finalmente estar chegando ao fim, que uma contínua obsessão por ela pode refletir uma pulsão de morte?”

Na pandemia, as dúvidas serviram intensamente para diferentes propósitos, como ela cita. “Sua liberdade está me matando!”, diziam as placas dos manifestantes, nas ruas. “Sua saúde não é mais importante que a minha liberdade!”, outras pessoas, sem máscara, a maioria negacionista, gritavam como resposta.

Aos poucos, resolveu seguir em frente. Percebeu que parte do problema reside na palavra em si, cujo significado não é de todo óbvio ou compartilhado. “E, de fato, essa palavra opera mais como ‘Deus’, tanto que, quando a usamos, nunca sabemos exatamente do que estamos falando, ou se estamos falando da mesma coisa”.

O estudo avançou e ela chegou a observações impactantes para se entender o mundo neste começo de década. Seu livro não defende qualquer tipo de tese, pois a intenção é fazer pensar diante da complexidade do desafio.

Ou nem isso. “Toda escrita, mesmo aquela que tenta abordar um ‘agora’, acaba abordando um ‘não agora’, pelo menos porque o momento da composição não é compatível com o da publicação ou da disseminação”, escreve, no final da obra. A ensaísta relaciona liberdade com insegurança, anseio, estresse, pânico – males que afetam cada vez mais pessoas.

No epílogo, ela destaca: “Começar este livro no início da era Trump e concluí-lo durante uma pandemia devastadora cujo fim, enquanto escrevo, não está à vista, me proporcionou a grande oportunidade de imaginar que tipo de mundo poderia surgir (e, diante das mudanças climáticas, que tipo de mundo viria depois deste)”. Tudo isso não apenas mudou o conceito como continuará a fazê-lo nos anos de pós-pandemia.

A ensaísta Maggie Nelson

E sobre obter a liberdade “em dois, três segundos” e se desprender de “todo o pesar e arrependimento do passado […] de toda a incerteza e medo do futuro”, a autora afirma que não pode dizer que isso já aconteceu com ela. “Na verdade, uma das surpresas felizes deste livro foi que me concentrar na liberdade me conduziu a um intenso acerto de contas com a ansiedade, uma das adversárias mais formidáveis da liberdade”.

Talvez, escreve ela, isso não devesse ter sido uma surpresa. “Um dos ensinamentos da interdependência é que não podemos conhecer nada sem conhecer seus semelhantes ou seus arredores”.

Maggie Nelson, ressalta ela mesma, não seria a primeira pensadora (ou ser humano) a descobrir o parentesco angustiante e potencialmente fértil entre a liberdade e a ansiedade, mesmo que tivesse de aprender tudo de novo sozinha.

“Mas posso dizer que, através de excursões repetitivas e muitas vezes dolorosas, aprendi quais hábitos mentais causam mais pânico e deixam o coração mais apertado (pavor de cenas ou surpresas ruins; um desejo brutal de afastar a dor, a doença ou a morte; tentativas de controlar o que diminui a nossa capacidade de fazer isso), e quais conduzem a uma amplitude, abertura, pensamentos mais leves ou como você queira chamar — o silêncio e o nada ao fim da escrita e tudo o mais”.

A autora conta que não sabia e ainda não sabe como seria se abrir para essa amplitude. “Às vezes, tenho convicção de que não vou saber em vida. Mas não busco uma pulsão de liberdade que seja primariamente uma pulsão de morte; tudo isso está para acontecer. E até lá, quero estar inteira: de coração, sem escapatória”.

Serviço:
Sobre a liberdade – Quatro canções sobre cuidado e repressão
Maggie Nelson
Companhia das Letras
384 páginas
R$ 99,90