Nova York — O israelense Eli Sharabi, de 54 nos, nunca sonhou em escrever um livro. Sua carreira sempre foi dedicada aos números. No entanto, depois de sobreviver 16 meses nas mãos de terroristas do Hamas, ele decidiu deixar um testemunho. Desde que foi lançada em inglês há um mês, sua obra Hostage (“Refém”) figura na lista dos mais lidos do jornal The New York Times. Sem versão brasileira, o livro está disponível em inglês no Kindle.
Traduzidas do hebraico e ainda inédito no Brasil, as páginas relatam minuciosamente uma realidade que repórteres, analistas ou políticos seriam incapazes de retratar: os 491 dias e noites que ele passou desde que foi capturado durante o massacre de 7 de outubro de 2023.
Naquela manhã de sábado, o grupo terrorista invadiu o sul de Israel, deixando 1,2 mil mortos, milhares de feridos e sequestrando 250 — todos arrastados para Gaza. Entre os mortos, de 79 nacionalidades, quatro eram brasileiros.
Ao longo dos dois anos da guerra que se seguiu, alguns reféns foram mortos em cativeiro e outros libertados mediante acordos políticos em troca de tréguas e prisioneiros palestinos. Eli passou os 16 meses sequestrado sem saber do destino de sua família.
Em 8 de fevereiro de 2025, ele foi devolvido para Israel 44 quilos mais magro, ao lado de mais dois reféns em situação similar. Foram 16 meses em poder do Hamas, sem saber do destino de sua família.
Para o livro, o autor dispensou ghostwriters. Queria que suas palavras fossem simples e autênticas, com o objetivo de levar o leitor ao seu lado, vivenciado cada situação. E conseguiu.
Sem abordar política nem estratégias militares (ele diz que esse não é o seu papel), a leitura revela um homem de personalidade cartesiana e seu amor pela vida como forma de enfrentar humilhações diárias: falta de banho, de cama, de luz, de seus óculos, de comida e de liberdade. A fraqueza, as pernas acorrentadas, as costelas quebradas por chutes, o pé descalço, a saudade de casa e nenhuma informação sobre o mundo exterior.
Casado há 28 anos, Eli vivia com a esposa, a britânica Lianne, e as filhas adolescentes Noiya e Yahel, no kibutz Be’eri, a quase cinco quilômetros da fronteira de Gaza. Lá, ele trabalhava como CFO da gráfica Be’eri Printers, a principal fonte de renda do kibutz.
Descendente de marroquinos e iemenitas, Eli é fluente em árabe, além do inglês. A vida era tranquila: ele gostava de mergulhar, as meninas eram alunas dedicadas e a família passava os finais de ano visitando os parentes na Inglaterra.
"Prometo voltar"
Na manhã de 7 de outubro, ainda de pijama, pais e filhas ouviram sirenes e se trancaram no quarto de proteção, um espaço que serve de escudo contra mísseis. No entanto, são locais sem tranca, não foram projetados para se defender de invasores.
No grupo de WhatsApp do kibutz, amigos descreviam terroristas armados com metralhadoras e granadas, assassinatos e incêndios. Até que alguns deles invadiram a casa de Eli.
Ele logo anunciou aos agressores que a esposa e as filhas tinham passaportes britânicos, acreditando que a nacionalidade estrangeira as blindaria de qualquer mal.
Levaram o pai, deixando as três para trás. “Prometo voltar”, disse ele à família. Foi este juramento que o manteria vivo a partir dali.
Os terroristas vendaram seus olhos e o jogaram na traseira de um carro roubado, junto com outro refém, rumo à Gaza. Ao sair do veículo, Eli foi atacado pela população na rua, até ser escondido no segundo andar da casa de uma família de classe média.
Seus braços foram acorrentados para trás e ficaram assim por semanas, provocando uma dor excruciante nos ombros. Com ele, estava um refém tailandês que não falava hebraico nem inglês. Jovem, ele passava os dias em constante pânico. Eli tentava acalmá-lo
Enquanto dois guardas vigiavam Eli e o rapaz, incluindo as idas ao banheiro, a vida seguia normal para a família, dona da casa: almoço farto cozinhado pela mãe, escola, idas ao supermercado e à padaria. O pai falava inglês, os três filhos eram bons alunos e todos rezavam de manhã e à tarde. Eli podia escutar os ataques aéreos da retaliação israelense, mas não tinha acesso a notícias.
Quase dois meses mais tarde, o autor foi levado (de olhos vendados e ainda acorrentado) até uma mesquita, onde havia uma escada que dava acesso a um dos túneis projetados pelo Hamas. Estima-se que eles se estendem por até 725 quilômetros, com 5,7 mil entradas. Com uma arma apontada para a sua cabeça, Eli e outros reféns trazidos ali não tiveram opção: foram obrigados a descer cinquenta metros abaixo da terra.
Na escuridão, ele passaria os próximos 14 meses ao lado de três jovens capturados em um festival de música: Elyia Cohen, Or Levy e Alon Ohel, um pianista de 22 anos, que se tornaria quase um filho para o autor.
Acorrentados pelas pernas por todos os meses de cativeiro, os quatro nunca conversaram sobre política: cConsolavam seus choros, dores e ataques de pânico; dividiam míseros pedaços de pão árabe e negociavam quem ia ao banheiro e quem ou quem dormiria no chão quando faltava colchão.
Os reféns eram despidos pelo Hamas, obrigados a se raspar e, com sorte, tomavam banhos de balde a cada dois meses. Os terroristas os mudaram de túneis duas vezes. Quando emergiam à superfície, eles caminhavam em meio a escombros sem sapatos, o que lhes dava alguma noção da escala da guerra.
Nos túneis, faltavam banheiros e sobravam minhocas, baratas e ratos. Todas estas situações geravam desentendimento entre os reféns. Nem sempre tudo era amizade. [Relatos de outros sobreviventes — homens e mulheres — mantidos em outros túneis falam em abusos sexuais. Em Hostage, não há nada desta natureza.]
O vendedor de falafel
Quando possível, Eli conversava com seus sequestradores em árabe. Cada um tinha um apelido dado secretamente pelos reféns. O livro conta sobre a hierarquia do Hamas, revela que suas idades variavam de 20 a mais de 50 anos e que muitos estavam ali para fazer um dinheiro extra, incluindo um vendedor de falafel.
Outros eram tão desconectados do mundo atual que celebraram ter visto o filme Titanic, de 1997, achando que era lançamento.
Eli entendia a necessidade financeira dos sequestradores, mas não se deixava enganar, sublinhando que a obsessão por morte e tortura nada tem a ver com questão econômica. Todos tinham passado por uma profunda lavagem cerebral. Sua compreensão sobre a vida de seus sequestradores não tinha nada a ver com a Síndrome de Estocolmo. “Aqui não é Noruega. Eles são o Hamas”, escreve.
O autor sabia também que os terroristas não queriam matá-los. Apesar de outros terroristas terem atirado ou degolado seus reféns, aquelas vidas serviam como trunfo numa guerra sem data para terminar. Mesmo assim, Eli estava ciente de que a qualquer momento ele poderia ser morto. Bastava algum dos agressores se estressar.
Esquálido, Eli foi libertado em fevereiro deste ano, junto com mais dois reféns, um deles, seu companheiro de cela, Or Levy, em uma cerimônia ensaiada e perante uma plateia de famílias e crianças palestinas, com direito a diploma e sacola de brinde. Eles foram entregues à Cruz Vermelha e, em seguida, ao exército israelense.
Neste momento, o autor descobriu que sua esposa e filhas foram assassinadas logo após sua captura. Um total de 132 pessoas, incluindo amigos de infância e colegas de trabalho, foram mortas em seu kibutz. Sua casa foi destruída. E, seu irmão, Yossi, também sequestrado, foi morto em Gaza em decorrência de um ataque aéreo israelense.
Os três foram trocados pela libertação de 180 palestinos encarcerados em prisões israelenses por diferentes crimes.
Desde seu retorno, Eli ganhou peso e engajou-se na luta das famílias pela volta dos 48 reféns, 20 deles vivos, ainda em cativeiro. Com o cessar-fogo em outubro passado, todos os vivos retornaram para casa, incluindo o pianista Alon, hoje com 24 anos e cego de um olho.
Dias depois, o corpo de seu irmão foi devolvido para Israel, onde Eli pôde enterrá-lo ao lado de Lianne, Noiya e Yahel.
Há poucas semanas, o autor revelou estar namorando uma fisioterapeuta que ajudou em sua recuperação. Mas ele ainda não se deu ao luxo de descansar: até a publicação desta resenha, sete famílias de reféns assassinados em cativeiro ainda aguardavam o retorno dos corpos de seus parentes.