Diz o dito popular que nós temos um “segundo estômago” reservado apenas para os doces. E não é que, em 2020, pesquisadores da Penn State University, nos Estados Unidos, decifraram os mecanismos cerebrais que sempre garantem um lugarzinho para os quitutes açucarados — mesmo quando, saciados com os salgados, temos certeza de que não aguentaremos comer mais nada.
Pois é esse espaço que o chef pâtissier Rodrigo Ribeiro, de 31 anos, quer ocupar, com o seu Ara (lê-se "a-rá"). Inaugurado em junho, em São Paulo, é o primeiro restaurante do Brasil dedicado única e exclusivamente a sobremesas.
Não, não é confeitaria. Naquela pequena casa, no bairro de Pinheiros, os doces recebem tratamento de prato principal. Autorais, complexos e delicados, são montados e empratados na hora. Até o brigadeiro é enrolado segundos antes de ser servido ao cliente.
“Diferente das docerias tradicionais, não deixamos nenhum doce pronto, para não comprometer a qualidade”, explica Ribeiro, em conversa com o NeoFeed. “Quando expostas na vitrine, as massas tendem a amolecer, enquanto os cremes, a ressecar.”
Com um balcão em madeira maciça, onde cabem nove pessoas, e três mesas, de dois lugares, cada uma, aos sábados, o Ara vem lotando, depois de viralizar no Instagram.
Do cardápio atual, constam dois tipos de brigadeiro, um de bombom, um de trufa e dois de lascas de chocolate, cujas unidades custam R$ 9. As duas versões de cookies e o brownie saem por R$ 15.
O charme do restaurante, no entanto, são as sobremesas empratadas, a R$ 39. Como a elaborada Verde amarelo, uma panacota de mel e cumaru com crumble de azeite, geleia de maracujá e ervas, sorbet de maracujá e azeite de manjericão.
Entre as mais pedidas está a Terrário — também a mais "instagramável", óbvio. Montada dentro de um copo de vidro, redondo e largo, remete a um pequeno arranjo botânico. Leva ganache de chocolate com 70% de teor de cacau e um toque de sálvia, sponge cake de erva mate, gel de cambuci e lascas de cogumelo portobello, entre os principais ingredientes.
Uma hora e meia só de doces
O Ara oferece três menus degustação. O mais barato, a R$ 40, é só de chocolates. O intermediário oferece cinco sobremesas, cujos preços variam de R$ 150 a R$ 180, conforme a bebida escolhida — sucos, águas, vinho ou cerveja.
Para as opções que levam chocolate, Ribeiro recomenda um tinto. Para as outras, vinho branco ou rosé ou uma das cervejas frutadas, incluídas no menu.
A R$ 199, o menu completo chega a dez etapas — inclui todas as sobremesas e chocolates. E leva cerca de uma hora e meia para terminar. Sempre presente, Ribeiro se encarrega da maioria das finalizações e de explicar cada receita em detalhes, para quem se senta no balcão.
“Nos restaurantes, de maneira geral, os clientes costumam reservar só alguns poucos minutos para a sobremesa”, lamenta o chef, disposto a subverter essa lógica.
Não à toa, o nome do restaurante, em tupi-guarani, significa “tempo”. É tempo não só de apreciar e valorizar a sobremesa, mas também de brasilidade, responsabilidade, sazonalidade, sustentabilidade, criatividade, prosperidade... de “revolução na confeitaria brasileira”, como se lê no “manifesto” do restaurante.
Avesso a produtos industrializados, Ribeiro prioriza os pequenos produtores orgânicos. Em respeito à sazonalidade dos ingredientes, o cardápio deve mudar a cada mês e meio. Trabalhar apenas com frutas da estação, por exemplo, garante aos preparos mais sabor, aroma, textura e cor.
Adepto do desperdício zero, ele procura aproveitar ao máximo tudo de todos os produtos. Na tortinha Doce tangerina, por exemplo, o confeiteiro, além dos gomos, usa as sementes, a casca e até as folhas. Com o fim da época do cítrico, em breve, a sobremesa será substituída por uma de maçã.
Como o restaurante funciona de segunda a sábado, do meio-dia às sete da noite, a maioria dos clientes vai ao Ara, depois de comer em outro lugar. Cerca de 10% fazem o inverso — o doce antes do salgado. Já três em cada dez, garante Ribeiro, almoçam sobremesa.
Pode soar enjoativo, mas não. Os pratos preparados pelo confeiteiro não são muito doces. A combinação de vários tipos de ingredientes conferem às preparações uma mistura de sabores amargos, ácidos e, por vezes, até levemente salgados.
“Eu me dedico a uma confeitaria mais complexa e pensada”, diz o chef, que não descarta abrir espaço para clássicos como o tiramisù, desde que à sua maneira, claro.
Atualmente consta do cardápio, por exemplo, um curau; mas não um curau qualquer. O Curau brulée é um curau de baunilha, com caramelo maçaricado e crocante de milho com canela.
Da veterinária para a confeitaria
Nascido em Osasco, na Grande São Paulo, antes de cursar gastronomia, Ribeiro pensou em ser veterinário. Mas, um breve estágio em uma clínica o fez abandonar a ideia.
“Quando me deparei com cachorros machucados e donos desesperados, concluí que não era a minha praia”, lembra. Foi o amor pelos bichos que o levou para a confeitaria — se optasse pela gastronomia tradicional, teria de manusear carne animal.
Depois de formado e antes de empreender, estagiou no D.O.M., de Alex Atala, e no Maní, de Helena Rizzo. Nesses lugares, conta, aprendeu o valor dos ingredientes brasileiros. Trabalhou ainda no Petí Gastronomia, prestou consultoria para um reality de confeitaria e deu aulas.
Ribeiro procurava investidores para o Ara, quando a pandemia veio e todos os planos foram suspensos. Na virada de 2020 para 2021, ele passou um período no restaurante Coda, em Berlim, também dedicado apenas a sobremesas. De propriedade de René Frank, a casa tem duas estrelas Michelin.
“A segunda estrela foi conquistada quando eu estava lá”, gaba-se o confeiteiro. Na casa alemã, os preços dos menus degustação, sem bebidas, variam de € 264 a € 294 (entre R$ 1,5 mil e R$ 1,7 mil).
De volta ao Brasil, ele convidou o irmão Gabriel, de 37 anos, para sócio, os dois investiram R$ 200 mil no negócio e, assim, o Ara nasceu.
Hoje, ele comanda a cozinha com a ajuda de Agatha Felício, uma ex-aluna, enquanto Gabriel, vindo do mercado de TI, cuida do caixa.
A casa paulistana segue uma tendência em ascensão na cena gastronômica global.
Nos últimos anos, empreendimentos semelhantes foram inaugurados também nos Estados Unidos, na Indonésia, no Japão e em Cingapura.
“Torço para que o Ara sirva de inspiração para o surgimento de mais restaurantes do tipo no Brasil”, afirma Ribeiro. Espaço para a sobremesa, afinal, sempre há.