Na semana em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva anunciou a isenção fiscal para o setor automobilístico como forma de facilitar o financiamento de carros, um livro que chega às livrarias nos próximos dias faz um alerta para o risco de se repetir um erro grave ocorrido nos dois primeiros governos do petista. E que foi fundamental para as manifestações de junho de 2013.
Há exatos dez anos, o aumento de 20 centavos na passagem de ônibus pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, se transformou em uma onda nacional de mobilização política só comparada às Diretas Já, em 1984, e ao Fora Collor, em 1992.
Em "A razão dos centavos – Crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013", o urbanista, ensaísta e ativista Roberto Andrés observa que o crescimento das frotas de veículos impacta os ônibus, com o aumento dos congestionamentos. Ou seja, quanto mais gente migra para os carros, pior fica a condição dos que dependem do transporte público para se locomover.
“Os governos petistas, que produziram a maior expansão de carros da história do país e não levaram adiante políticas consistentes para o transporte público, armaram uma bomba que não tardaria a explodir”, afirma Andrés. Portanto, mesmo bem-intencionado, o atual governo pode reviver esse problema com mais carros nas ruas.
Para os moradores dos bairros populares, continua ele, estabeleceu-se uma dependência exacerbada do transporte coletivo, ao mesmo tempo que este nunca foi estruturado como um serviço público essencial. E, para piorar, as frotas de particulares atravancaram as cidades. “Como resultado, o transporte tornou-se um elemento de martírio — atrasos, veículos lotados, longo tempo das viagens”, escreve.
E essa condição foi um dos pilares para o que motivou o levante de 2013 e gerou seguidas crises políticas e econômicas, ameaçou a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil, o despertar da extrema-direita e acabou com o impeachment de Dilma – o livro termina bem antes disso.
Em quase 500 páginas – fruto de seu doutorado –, Andrés enfatiza que a apropriação política do movimento iniciado contra o aumento das passagens no transporte público acabou por ofuscar graves problemas nas capitais brasileiras que não foram solucionados, como pioraram bastante desde então. Um caos que represa toda a economia do país – desde o deslocamento de pessoas para o trabalho às entregas de matérias-primas e material manufaturado.
Com isso, cai a produtividade nas empresas, reduz o consumo, desmotiva os trabalhadores e encarece a produção. Uma discussão, aliás, que faz questão de reforçar: os recordes de produção e venda de carros nos governos de Lula ainda desafiam quem estuda fenômenos sociais, econômicos e políticos e suas principais questões seguem presentes no Brasil e deverá continuar assim por bastante tempo.
A obra é dividida em o antes, o durante e o depois das manifestações. Na terceira, é mostrada como a realização da Copa do Mundo de 2014 no Brasil ficou sob ameaça durante meses, com discursos de sabotagem pelas redes sociais – que passaram a mostrar seu poder de mobilização no ano anterior.
“O resultado da participação da seleção brasileira no torneio — o fatídico 7 × 1 sofrido contra a seleção da Alemanha, em uma partida na qual parecia que apenas um dos times jogava — não poderia ser mais representativo do saldo político a que se tinha chegado”, afirma o autor.
Tudo parecia dar errado. O palco da derrota assombrosa foi o Mineirão, estádio cuja reforma para a Copa foi denunciada por ter expulsado um comércio de base popular conhecido em Belo Horizonte, cortado centenas de árvores para dar espaço a milhares de vagas para automóveis, privatizado a sua gestão e levado às alturas o preço dos ingressos. Não foi diferente nos outros estados que ganharam estádios chamados de “arenas”. E todos sob denúncias de obras superfaturadas.
Cinco dias antes do 7 x 1, um episódio marcou o “legado” das obras da Copa, que resvalou no governo Dilma. A alguns quilômetros do Mineirão, o viaduto nomeado Batalha dos Guararapes ruiu, matou duas pessoas e ferindo 23 – as imagens chocantes viralizaram pela internet. “O desabamento explicitava os descaminhos das políticas urbanas nos anos anteriores”.
A obra, também apontada como superfaturada, ia na contramão das políticas de referência em mobilidade urbana, que devem dar prioridade ao transporte público e aos pedestres, escreve Andrés.
Em um uma eleição marcada por reviravoltas, Dilma se reelegeu, mas a promessa de Aécio Neves de não deixá-la governar em paz foi a senha para seu impeachment, tramado por forças de extrema-direita nascidas de 2013, como o Movimento Brasil Livre (MBL), cuja história é contada no livro e que se tornou símbolo dessa mobilização em meio a uma dificuldade de impulsionar a economia, sob tiroteio de todos os lados. Inclusive das esquerdas.
Andrés conta que pouco tempo depois de eleita, Dilma convidou um ex-executivo do Banco Bradesco, Joaquim Levy, para implementar um programa de austeridade no Ministério da Fazenda. Enquanto isso, boa parte da esquerda considerou uma traição o giro em seu programa econômico imediatamente após a campanha.
“Seu segundo governo perdeu apoio em sua base, ao mesmo tempo que o ódio estava instalado no campo político e era incentivado pelo candidato derrotado no segundo turno”, afirma o autor.
Nesse contexto em que os movimentos que lideraram 2013 foram esmagados junto com a alternativa eleitoral que mais se conectava aos anseios de mudança, e em que o ódio foi colocado no centro do tabuleiro político, emergiu uma nova direita, que se apropriou dos signos de Junho de 2013 para ocupar o vácuo deixado nas ruas.
“Descartando de vez o respeito à convivência democrática que marcara razoavelmente a disputa entre PT e PSDB nas décadas anteriores, Aécio Neves achou por bem questionar o resultado das urnas, o que contribuiu para abrir a avenida golpista que seria percorrida nos anos vindouros”, acrescenta.
Ficha Técnica
A razão dos centavos
Crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013
De Roberto Andrés
Páginas: 512
Formato: 14.00 X 21.00 cm
Editora: Zahar
Impresso: R$ 119,90
Kindle: R$ 44,90