Ao longo de mais de um século e meio desde sua profissionalização, salvo raríssimas exceções, o futebol tem sido hábil em revelar personagens que, a despeito de sua excelência, fogem da unanimidade e suscitam manifestações de amor e ódio. No Brasil, essa percepção é escancarada quando se fala, por exemplo, de estrelas como Pelé, Neymar Jr. e Zagallo.

Este último e veterano personagem, Mario Jorge Lobo Zagallo, hoje com 91 anos e mais de 60 deles dedicados ao esporte, ostenta um retrato singular e multifacetado nessa restrita galeria. Misto de herói e anti-herói, o “Velho Lobo” também se distingue, é claro, por ter sido alçado ao Olimpo do esporte como o único tetracampeão mundial de futebol.

Reconstituir com fidelidade a triunfal e ao mesmo tempo controversa história de Zagallo foi meta diária ao longo de um ano e meio para o jornalista Marcus Ramone. O resultado desta imersão está impresso na concisa narrativa da recém-lançada biografia Vocês Vão Ter Que Me Engolir! – Zagallo e o futebol (Editora Noir).

Impossibilitado de registrar depoimentos exclusivos devido à debilitada saúde do Velho Lobo, Ramone decidiu escrever o livro a partir de uma vasta pesquisa em publicações das últimas sete décadas e por meio da reconstituição minuciosa de episódios emblemáticos vividos por Zagallo dentro e fora de campo.

Uma das grandes frustrações de Zagallo foi ter se aposentado sem poder contribuir para a conquista do hexacampeonato. Neste momento em que o País persegue o tão sonhado título, na Copa do Qatar, a biografia do Velho Lobo tem, como efeito, o caráter inspirador de um “manual de altivez” que pode ser lido a qualquer tempo, para lembrar como o Brasil construiu sua hegemonia no futebol mundial.

Para quem testemunhou integralmente ou parte da história contada na biografia, Vocês Vão Ter Que Me Engolir! – Zagallo e o futebol é gatilho certeiro para reviver fortes emoções. Para millennials de última safra fanáticos por futebol ou até mesmo entusiastas da Geração Z, o livro tem caráter enciclopédico.

Melhor: a leitura de trechos que narram feitos inacreditáveis certamente sofrerá pausas abruptas para uma corrida rápida ao YouTube a fim de descobrir lances históricos do próprio Zagallo e de outros craques.

Do campo para o banco

Bicampeão mundial nos dois primeiros títulos conquistados pelo Brasil – na Suécia, em 1958, e no Chile, em 1962 – Zagallo se sobressaiu no início da década de 1950 como um ponta-esquerda de jogo atípico: misto de volante e zagueiro, díptico inovador por ele encampado em três clubes do Rio de Janeiro: América, Botafogo e Flamengo (nas duas últimas equipes, o Velho Lobo também fez história e muitos títulos como treinador).

Seleção brasileira na Copa de 1958, da direita para esquerda: Vicente Feola (técnico), Djalma Santos, Zito, Bellini, Nilton Santos, Orlando, Gylmar; em baixo: Garrincha, Didi, Pelé, Vavá, Zagallo

No capítulo em que reconstitui o caminho até essa série de consagrações, Ramone revela excentricidades como a nascente superstição e o início da fama de “pão duro” do jovem Lobo, então conhecido pela alcunha de “Formiguinha”, devido ao trabalho incansável dentro de campo.

O autor também traz à tona revelações inusitadas, como a origem do apelido “Bode”, vulgo que sugeria falta de higiene do então jogador, advindo do fato de Zagallo jamais dividir o vestiário com os companheiros de equipe e sempre deixar para tomar banho em casa.

Do banco ao campo

Em 1970, na Copa do México, veio o maior desafio: substituir o técnico João Saldanha e assumir a liderança do escrete canarinho que, em 21 de junho daquele ano, com uma vitória acachapante de 4x1 contra a Itália, elevaria o Brasil ao posto de primeiro tricampeão mundial de futebol.

A despeito de orquestrar a trajetória espetacular daquela que é considerada a maior seleção da história – elenco estelar que envolvia gênios como Pelé, Tostão, Rivellino e Jairzinho –, Zagallo não foi poupado de severas críticas decorrentes de um patrulhamento político-ideológico, polêmica também retratada na biografia.

Notório crítico da ditadura militar então conduzida por Emílio Garrastazu Médici, Saldanha foi deposto do cargo de treinador devido ao fato de não ter acatado uma ingerência do general, fanático por futebol, que exigia a escalação do atacante Dario, o Dadá Maravilha.

A imediata inclusão do craque tão logo Zagallo assumira o comando foi visto por muitos como um gesto de submissão e empatia com o regime de exceção. Fato por ele contestado, conforme excertos de reportagens recuperadas por Ramone.

Volta por cima

Vinte e quatro anos depois de seu maior êxito, Zagallo foi escalado pelo treinador Carlos Alberto Parreira para exercer a coordenação técnica da seleção. Desacreditado e alvo de epítetos ofensivos como “ultrapassado” e “burro”, o Velho Lobo, com seu notório pragmatismo e determinação, foi decisivo para a conquista do tetra na Copa dos Estados Unidos de 1994.

Como nem tudo foi glória, a biografia também esmiúça intrigas de bastidores, como a épica briga entre Zagallo e Romário, que culminou na condenação do atacante em um processo com indenização de R$ 240 mil.

Não escapam do livro dois grandes fracassos: a fatídica derrota na final do mundial de 1998, diante da anfitriã França, episódio que também envolve a nebulosa convulsão sofrida por Ronaldinho, descrita em detalhes no livro; e a precoce desclassificação da Copa de 2006 na Alemanha, quando era coordenador técnico.

Serviço:

Vocês Vão Ter Que Me Engolir! – Zagallo e o futebol
Marcus Ramone
256 páginas
Impresso R$ 59,90
Editora Noir