Pergunte o que fazer com a casca da banana e ela lhe sugerirá bater um bolo, preparar uma farofa ou assar uma porção de chips. Se ficou arroz do jantar, para o almoço, ela indica usar as sobras para fazer bolinho ou risoto. Ela também ensina como cortar os vegetais de modo a que se aproveite ao máximo as frutas, legumes e verduras. Pode pedir… ela entende muito de prevenção ao desperdício de alimentos.
Ela é a TIA, a inteligência artificial do Pacto Contra a Fome. Disponível via WhatsApp, a ferramenta acaba de ser lançada como parte da nova campanha do movimento. Depois de ser treinada ao longo dos últimos seis meses, além de criar receitas com os ingredientes que lhe são ditados, a assistente virtual fornece ainda dicas práticas de como evitar o desperdício no dia a dia dos lares. Quer saber como organizar a geladeira? Pode perguntar.
A comida perdida no ambiente doméstico soma a cada ano cerca de 7,5 milhões de toneladas — o que equivale a 13,5% das 55 milhões de toneladas postas fora anualmente no Brasil ao longo de toda a cadeia agroalimentar; da lavoura à mesa.
Dito de outra forma, cada brasileiro manda para o lixo 77 quilos anuais de comida, indicam as estimativas do PNUMA, o programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. O que, para uma família de três pessoas, ao cabo de um ano, representa um prejuízo de R$ 1.603.
Com a TIA, o Pacto pretende inspirar mudanças de comportamento. Em geral, não é fácil adotar novos hábitos, sobretudo quando eles envolvem tantas subjetividades, como são os alimentares. Comida não é apenas o combustível essencial ao bom funcionamento do organismo. É história, cultura, indulgência e status.
Em várias sociedades, inclusive, a brasileira, a mesa farta está frequentemente associada a sentimentos de cuidado, conforto e segurança.
Muitos rejeitam as sobras para marcar distinção social — como uma espécie de aviso de que, naquele lar, ninguém precisa se alimentar de "restos".
Não à toa o que ficou do almoço ou o excedente do jantar no restaurante estão em segundo lugar no ranking das categorias mais desperdiçadas, atrás apenas das frutas, legumes e verduras.
O relatório Na raiz do Brasil, da ONG Morada Comum, da rede global Our Common Home, é revelador do orgulho brasileiro de toda essa abundância alimentar. Depois da natureza, a comida é o que mais nos honra como povo.
"Temos algo virtuoso para trabalhar aí", diz Maria Siqueira, cofundadora e codiretora executiva do Pacto Contra a Fome, em entrevista ao NeoFeed. "Devemos nos orgulhar do que estamos comendo e não desperdiçando."
A transição para refeições mais sustentáveis pode ser desafiadora, mas ela é possível. E as boas novas vêm de estudos em torno da psicologia do desperdício.
Atitudes simples como organizar as compras semanais, priorizar o consumo de produtos próximos do vencimento, aproveitar ao máximo os alimentos e transformar as sobras em refeições caprichadas e apetitosas podem, aos poucos, operar grandes transformações.
E, melhor ainda, a transformação não demora a acontecer. Bastam seis semanas para que os novos comportamentos se consolidem em rotina, revelam pesquisadores da Universidade Anglia Ruskin, na Inglaterra.
Até bem pouco tempo atrás, a maioria dos brasileiros não via na alimentação uma possível ameaça ao planeta e à segurança alimentar global. Para se ter ideia, um estudo conjunto da FGV com a Embrapa, de 2018, mostra: 59% não dão importância se houver comida demais em casa. E é aí que a TIA, do Pacto, entra.
Com sugestões práticas e acessíveis, o algoritmo leva o combate ao desperdício para o cotidiano — facilitando a compreensão da questão e provando que a revolução começa com pequenos (grandes) hábitos.
Para a nova campanha, a coalizão criou também o Desperdiçômetro. Em parceria com a agência Africa Creative, o movimento desenvolveu peças publicitárias indicando quanto de comida é perdida enquanto se realiza uma determinada atividade. Os informes estão nos painéis dos aeroportos, nos pontos de ônibus, nas estações do metrô.... em espaços de grande circulação, de várias cidades — Belo Horizonte, Brasília, Curitiba, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
Na segunda-feira, 29 de setembro, lia-se na lateral de um prédio no centro da capital paulista: “A cada segundo que você olha essa projeção, 2 mil quilos de comida vão para o lixo no Brasil”. No mesmo dia, a mesma frase foi projetada na fachada da Biblioteca Nacional, em Brasília.
"A ideia é mostrar que, enquanto o tempo corre, o desperdício está acontecendo", afirma Maria. O Desperdiçômetro é um alerta para a urgência exigida pela fome e a insegurança alimentar e nutricional.
Por falar em tempo, enquanto você lia esta reportagem, foram desperdiçados entre 440 mil e 480 mil quilos de alimentos.
Nas estimativas mais conservadoras, é o bastante para dar de comer a cerca de 293 mil pessoas ao longo de um dia inteiro — o que equivale a toda a população de Juazeiro, no sertão baiano, ou Divinópolis, em Minas Gerais.
Está claro o tamanho do problema, não está?