“Que seu remédio seja seu alimento; e que seu alimento seja seu remédio”, já preconizava, há quase três mil anos, Hipócrates, o “pai da medicina”. Os avanços da ciência da nutrição e o aperfeiçoamento das tecnologias emergentes, porém, estão levando os preceitos do médico grego a um outro patamar. Está em curso a revolução dos alimentos funcionais 4.0.
Já é mais do que sabido que os lactobacilos e as fibras ajudam o trato gastrointestinal. Ou que os ácidos graxos protegem o coração e os carotenoides retardam a oxidação celular. O que se testemunha agora, nos laboratórios de pesquisa, espalhados ao redor do mundo, vai além das proteínas, vitaminas, minerais e aminoácidos, do modo como os conhecemos hoje.
Os cientistas conseguem esquadrinhar, em detalhes, o impacto dos nutrientes em nossas células. Isolam os bioativos e potencializam seu mecanismo de ação. E encontram formas inéditas de produção, como transformar micróbios em fábricas de funcionais. Além disso, ferramentas, como inteligência artificial, data science e machine learning, permitem a descoberta de compostos até então desconhecidos.
“Nunca tivemos um momento tão promissor em termos de desenvolvimento de novos ingredientes”, diz o engenheiro de alimentos Ary Bucione, sócio-fundador da consultoria NutriConnection, em conversa com o NeoFeed. “Passamos da fase em que a nutrição e a nutrologia indicavam apenas o que era necessário para repor nossa energia; para um momento em que é possível também reduzir a suscetibilidade do organismo a doenças.”
Não à toa, os alimentos funcionais são tidos como um dos pilares do futuro da alimentação. Na pesquisa da companhia irlandesa Kerry Group, aparecem com uma das dez tendências para 2023. Também são destaque no evento da Food ingredientes South America (FiSA), que acontece de 8 a 10 de agosto, em São Paulo. A feira reúne 700 marcas, em torno das inovações em alimentos e bebidas.
Frente à tamanha efervescência, o mercado global de alimentos funcionais cresce. Até 2032, deve avançar a uma taxa anual composta de quase 7%, chegando a US$ 597,1 bilhões. Em 2022, movimentou US$ 305,4 bilhões, nas estimativas da consultoria Precedence Research.
Um novo olhar
A filosofia por trás dos ingredientes bioativos propõe um olhar diferente para a comida. E abre inúmeras oportunidades de negócios – tão grandes quanto os desafios que impõe à indústria.
Os funcionais ganharam impulso com a pandemia de covid-19. “Um dos principais vetores dessa transformação são os consumidores”, explica ao NeoFeed, Diane Coelho, gerente da FiSA.
A pesquisa “O Futuro Funcional”, realizada pela Kerry, com 10 mil pessoas, em 18 países (o Brasil está incluído), é revelador do novo comportamento. De cada cem entrevistados, 86 topam pagar mais caro por alimentos com vantagens adicionais para a saúde.
E a maioria dos consultados está aberta a novidades. Metade deles considera o impacto nutricional e a qualidade dos ingredientes mais importantes até do que o sabor. É uma mudança radical de paradigmas.
Bem-informados e exigentes
Ultraconectados, mais bem-informados e, consequentemente, mais exigentes, eles entendem que o impacto da alimentação na saúde não acontece de uma hora para outra, mas se constrói no longo prazo, como informa o relatório da companhia irlandesa.
Conforme um outro estudo, divulgado, no início do ano, pela foodtech israelense Tastewise, hoje em dia, não basta mais informar apenas se o alimento é saudável ou funcional. Um em cada cinco consumidores sabe nomear os benefícios específicos que deseja encontrar nos produtos que leva para casa.
O levantamento da Kerry traz uma curiosidade. Entre os dez principais motivadores da compra de funcionais, o reforço do sistema imunológico aparece em segundo lugar, atrás apenas dos cuidados com a pele e à frente da proteção do trato gastrointestinal, cabelo, coração e ossos e até do controle de peso. É o reflexo do coronavírus.
“O que vivenciamos na pandemia nos marcou profundamente e as preocupação com a imunidade passou a ser mais relevante do que os cuidados estéticos”, avalia Fábio de Mello, gerente de desenvolvimento de negócios da Kerry, em entrevista ao NeoFeed. “E, como s avanços tecnológicos em nutrição sustentável, hoje conseguimos entregar bebidas e alimentos, que ajudam a fortalecer as defesas do organismo e garantem uma boa dose de saúde.”
Pela saúde proativa e preventiva
Há cerca de 15 dias, a biotech americana Brightseed lançou a Bioactives Coalition para aumentar ainda mais a conscientização sobre a importância das moléculas bioativas na composição dos produtos alimentícios. A frente conta com especialistas em alimentos, agricultura e saúde, vindos de importantes instituições, como as universidades Johns Hopkins e Tufts e a Cleveland Clinic.
“Os bioativos são o ‘bem que faltava’ no sistema alimentar global e um componente indispensável na busca por uma saúde proativa e preventiva”, diz, em comunicado, Jan-Willem Van Klinken, VP sênior de assuntos científicos e médicos da Brightseed.
Fundada em 2017, em San Francisco, na Califórnia, e quase US$ 120 milhões levantados, a startup usa inteligência artificial para encontrar bioativos, de origem vegetal, inéditos. Já descobriu dois.
Cânhamo, tremoço, tomate, mostarda e café
Ricos em fibras, o NFT e o NCT são abundantes nas cascas de cânhamo, descartadas pela indústria da Cannabis sativa l. Os compostos se revelaram eficazes contra a obesidade e o acúmulo de gordura no fígado, além de melhorar, como toda boa fibra, o trato gastrointestinal.
A biotech de San Francisco juntou os dois compostos, os transformou em pó e criou o ingrediente Brightseed Bio 01. E essa é apenas uma novidade do profícuo ecossistema dos alimentos funcionais.
Tem o OatUP, um leite de aveia enriquecido com concentrado de proteína modificada de tremoço, da australiana Wide Open Agriculture (WOA). Há também os cafés com cogumelos da finlandesa Four Sigmatic. Na Inglaterra, a Norfolk Plant Sciences levou os antioxidantes antocianinas, abundantes no mirtilo, romã e açaí, para os tomates – e as frutas perderam o vermelho e ficaram roxas!
Com o apoio da gigante alemã Bayer, também via alteração genética, a americana NuCicer criou um grão de bico com 75% mais proteína. O mesmo recurso foi adotado pela Pairwise, da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, para produzir folhas de mostarda menos picantes e garantir os benefícios da planta às donos de paladares mais sensíveis. E, por aí, vão as inovações.
Os desafios da indústria
Os alimento funcionais ganham força em um momento decisivo para a humanidade. Com o aumento da expectativa de vida e os maus hábitos da contemporaneidade, a incidência das doenças crônicas não transmissíveis cresce em ritmo acelerado. Distúrbios cardiovasculares, câncer e diabetes, entre outras, matam, a cada ano, 41 milhões de pessoas, no mundo --o equivalente a 74% de todos os óbitos.
E a dieta inadequada é um dos principais fatores de risco para tais males. A incorporação de bioativos aos alimentos do dia a dia pode ajudar a prevenir e controlar esses problemas. Mas para isso, a indústria tem um trabalho importante pela frente.
Além da busca por ingredientes de alta qualidade, pontuam os analistas da Kerry, os fabricantes “também devem resolver questões de formulação que vêm com a adição de compostos funcionais”. A inclusão de um bioativo pode deixar um gosto amargo na boca ou um aroma estranho, por exemplo.
“A seleção de um sabor que combine e complemente o ingrediente funcional ajuda os consumidores a criar uma associação mais forte com a função do alimento”, lê-se no relatório “O Futuro Funcional”.