Na África Ocidental, nos últimos quatro anos, dezembro tem sido de chuvas torrenciais. E fevereiro, de um calor inclemente. E assim, ano a ano, o futuro do cacau é cada vez mais incerto — impondo aos fabricantes globais de chocolate desafios sem precedentes.
Na Costa do Marfim e em Gana, responsáveis por 60% de todo o fruto produzido no mundo, as plantações enfraquecem e as colheitas minguam.
A escassez fez do cacau a commodity agrícola que mais valorizou em 2024. A tonelada fechou 2023 cotada em US$ 4,2 mil, um limite que não era ultrapassado desde a década de 1970, informa o jornal americano The New York Times. Ao longo dos últimos dez anos, o preço girou em torno dos US$ 2,5 mil.
O consumo de chocolate, porém, aumenta e deve fechar 2024 em US$ 250 bilhões, no mínimo, avaliam os analistas da consultoria Statista.
Frente a perspectiva de desabastecimento, os capitalistas de risco do ecossistema agrifoodtech e grandes companhias voltam sua atenção para as inovações que prometem “chocolate sem cacau”. Desde 2020, três dezenas de investidores destinaram quase US$ 170 milhões para as três principais startups do setor.
O aporte mais recente é também o maior. Fundada em 2021, em Oakland, Califórnia, pelo CEO Adam Maxwell e a VP de operações Kelsey Tenney, dois chocólatras assumidos, a Voyage Foods acaba de levantar US$ 52 milhões.
A rodada de série A+ foi liderada por Level One Fund e Horizon Ventures, com participação de SOSV, Collaborative Fund e Nimble Partners. Com os cheques de agora, o aporte total chega a US$ 94 milhões.
Em abril, a gigante Cargill se tornou a fornecedora exclusiva B2B (business-to-business) da Voyage Foods, para o mercado global.
“Essa parceria é apenas uma das muitas maneiras pelas quais estamos preparando nosso portfólio para o futuro e atendendo às demandas dos consumidores e às regulamentações do mercado em torno da sustentabilidade e saúde”, diz Inge Demeyre, diretora de indulgência da Cargill, em comunicado.
A equipe de P&D da startup de Oakland isolou as moléculas responsáveis pelo sabor e pela textura do chocolate. Depois, graças aos avanços da biotecnologia, por intermédio da fermentação de precisão, fizeram o doce de sementes de girassol, uva e grão de bico, entre outros vegetais.
Vencida essa etapa, o “chocolate sem cacau” sai dos laboratórios da Voyage Foods e entra linha de produção. “Ao contrário das outras empresas de tecnologia alimentar, nosso processo é praticamente idêntico ao modo de fabricação tradicional”, lê-se em relatório da empresa.
Com isso, a startup tem condições de produzir em larga escala. Além da guloseima, a empresa californiana é dona da receita de “pasta de amendoim sem amendoim” e “creme de avelã sem avelã”. Todos os produtos são livres de alérgenos e leite.
Aliás, a primeira inovação da Voyage Foods, a Peanut-Free Spread, lançada em maio de 2022, e a Hazel-Free Spread, desde outubro de 2023, são vendidas nas lojas da Walmart, nos Estados Unidos.
O chocolate que veio da aveia
A cerca de 9 mil quilômetros de distância, do outro lado do Atlântico, a alemã Planet A é a segunda startup do setor a receber os mais altos investimentos de fundos VC, conforme relatório da plataforma Crunchbase.
Desde sua fundação em 2021 pelos irmãos Maximillian e Sara Marquart, CEO e CTO, respectivamente, também chocólatras, a empresa de Munique já amealhou US$ 43,3 milhões. O investimento mais recente de US$ 15,4 milhões aconteceu em janeiro e foi capitaneado pelo fundo climático VC.
Como na Voyage, na Planet A o chocolate livre de cacau é produzido em biorreatores gigantes, a partir da aveia, fornecida por produtores locais.
Os Marquart fabricam tanto o chocolate concentrado ChoViva quanto a manteiga de cacau ChoViva Butter. Os irmãos operam no modelo B2B e calculam emitir menos de 90% de carbono, em comparação à cadeia tradicional do alimento.
A terceira startup das “big 3” é a americana California Cultured. Lançada em 2020, a empresa arrecadou US$ 4 milhões em investimentos.
A startup de West Sacramento tem uma estratégia diferente da adotada pela Voyage e pela Planet A. O chocolate é obtido por meio do cultivo de células vegetais.
Os cientistas da California Cultured selecionam e isolam as células do cacau com as melhores propriedades organolépticas, aquelas que podem ser facilmente percebidas por nossos sentidos.
Em seguida, eles “cultivam” essas estruturas em laboratório — em grandes tanques que imitam as melhores condições da natureza para o cacau prosperar, não estivesse o mundo à beira do colapso climático. Entre três e quatro dias, os grãos de cacau estão prontos para serem colhidos, fermentados e torrados.
Até agora, a California Cultured recebeu US$ 4 milhões, em investimentos de venture capital.
Em defesa do planeta e das pessoas
Tirar o cacau da equação do chocolate não é apenas uma forma de contornar a escassez cada vez maior do fruto. É uma forma também de proteger o planeta de práticas agrícolas nocivas, sobretudo o desmatamento.
Um relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) alerta: a má gestão dos cacaueiros contribui para a destruição de ecossistemas, a perda da biodiversidade, a erosão do solo e a sedimentação dos córregos.
Principal produtor mundial do fruto, entre 1990 e 2015, a Costa do Marfim perdeu 64% de vegetação por causa das plantações de cacau. Mantido o ritmo atual de devastação, até 2030, toda a florestal tropical do país terá morrido.
Conforme a agência da ONU, há no mundo entre 5 milhões e 6 milhões de agricultores de cacau.
A imensa maioria é de pequenos produtores, sem infraestrutura. Com a produção em crise, além das baixas remunerações, muitos recorrem à mão de obra de crianças.
Os relatos da exploração são terríveis — há denúncias, inclusive, de tráfico de meninas e meninos.
Sob a pressão de ONGs e dos consumidores, nos últimos anos, várias fabricantes de chocolate se viram obrigadas a responder na Justiça por denúncias de trabalho infantil.
Em um cenário tão devastador do ponto de vista ambiental e humanitário, o chocolate livre de cacau acena com a possibilidade de um futuro mais sustentável, produtivo e digno.