Desde 2006, a Natura & Co não usa animais nos ensaios de segurança e eficácia de seus produtos e ingredientes proprietários. A gigante brasileira de beleza e higiene pessoal trabalha com, pelo menos, 60 métodos alternativos ao uso de coelhos, camundongos, porcos e cachorros. Boa parte deles requer pele de laboratório. E a companhia precisa de muita pele para testar cosméticos, hidratantes, sabonetes, xampus, cremes, perfumes...

Em 2019, a Natura se uniu à Universidade de São Paulo (USP) para investigar o potencial da bioimpressão 3D, como forma de escalar a fabricação de pele artificial.

Liderada pela bioquímica Silvya Stuchi Maria-Engler, professora titular do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, a equipe do laboratório iNOVAPele conseguiu provar que a qualidade do modelo impresso é tão boa quanto a do tecido produzido manualmente.

Com participação também da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o estudo alçou o Brasil a uma posição de destaque internacional, com direito a artigo publicado, agora, em 2023, na revista científica americana “Bioprinting”.

Até então inédita no país, a pele bioimpressa reproduziu à perfeição a estrutura morfológica da epiderme natural. E mais. Submetida a critérios de validação estabelecidos por instituições globais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o modelo se revelou eficaz tanto na retenção hídrica quanto na proteção contra estressores químicos e físicos.

“O ganho proporcionado pela bioimpressão vai além da rapidez”, diz ao NeoFeed a bióloga Juliana Lago, gerente científica de avaliação de segurança e eficácia pré-clínica, da Natura. “Como a ação é robótica, automatizada, a tecnologia proporciona uma pele mais robusta, sem a variabilidade inerente aos modelos produzidos pelo 'pesquisador humano'.”

Biotinta à base de colágeno e células

Imprimir uma pele em 3D segue o mesmo processo das impressões tridimensionais comuns. A diferença está no material utilizado. No caso do projeto da Natura-USP, foi usada, digamos, uma “biotinta”, uma solução de fibras de colágeno e células cutâneas sadias, obtidas de doadores.

Frente ao sucesso da bioimpressão, os pesquisadores do iNOVAPele querem ir além da epiderme e estender os estudos para as camadas mais profundas da pele, a derme e a hipoderme, naturalmente mais complexas.

A bioquímica Silvya trabalha há, pelo menos, 15 anos, no estudo e desenvolvimento de peles artificiais. Ao longo desse tempo, o iNOVAPele ganhou projeção e se transformou em centro de referência internacional no assunto. Descrita pela primeira em 2017, em artigo na “Toxicology in Vitro” e batizada “modelo USP”, a pele 3D criada no laboratório da universidade foi a primeira 100% brasileira.

“Antes desse modelo nacional, só existiam os modelos internacionais, adquiridos por importação”, conta a professora, ao NeoFeed. “Todo mundo que trabalha com pele artificial, hoje, no Brasil, foi treinado aqui, no nosso laboratório.”

Além de uma conquista para a ciência brasileira, a pele bioimpressa é reveladora da importância das parcerias academia-indústria, na construção de negócios inovadores e sustentáveis

O corpo humano em um chip

As tecnologias para tornar as indústrias da beleza “cruelty-free” têm avançado a passos largos. Umas das ferramentas mais modernas é a “human-on-a-chip”, adotada, em 2022, pela Natura. A metodologia consiste em circuitos biológicos integrados, que simulam o intrincado funcionamento do corpo humano.

No centro de pesquisas da companhia, os cientistas trabalham com três organoides – pele, fígado e intestino. Tudo começa com a cultura celular 3D dos órgãos, em estudo. Em seguida, essas estruturas são colocadas, cada uma, dentro de um chip.

juliana lago natura
Juliana Lago, gerente científica da Natura

Como esses sistemas estão conectados, é possível avaliar o impacto de um produto de uso tópico, por exemplo, não apenas na pele, mas em todo o organismo.

“Nossos testes vêm evoluindo com a ciência”, orgulha-se Juliana. Não à toa, a Natura é tida como uma das empresas pioneiras e avançadas no desenvolvimento de metodologias para abolir os ensaios em animais.

Contando todos os tipos de inovação; de matérias-primas inéditas a embalagens, inclusive os novos testes de segurança e eficácia; em 2022, a companhia investiu R$ 340 milhões em pesquisa e desenvolvimento --o equivalente a 2,3% de sua receita líquida.

Para além do ativismo

Metodologias como a pele bioimpressa e a “human-on-a-chip” vêm atender uma demanda crescente da sociedade. “A preocupação com o uso de cobaias extrapolou os limites do ativismo pelo bem-estar animal”, diz ao NeoFeed Ricardo Laurino, presidente da Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB). “Hoje em dia, os consumidores estão dando seu recado para as indústrias de que não aceitam mais essas práticas.”

Além da Natura, o iNOVAPele, da USP, já produziu pele para outras companhias, como a Johnson & Johnson e a Colgate.

O mercado global de beleza “livre de crueldade animal” está previsto para avançar, nos próximos sete anos, a uma taxa anual composta de 4,56%, segundo analistas da Market Research Future. Se o setor movimentou, em 2020, US$ 5 bilhões; em 2027, está previsto alcançar US$ 14,23 bilhões.