O empreendedor Felipe Diesel, 37 anos, morava na pequena Santa Rosa (RS), que fica a 7 horas de Porto Alegre, quase na fronteira com a Argentina. De lá, no município de pouco mais de 70 mil habitantes, teve a ideia de criar, ao lado de William Santos, uma startup: o Yours Bank, um banco digital para crianças.

Os dois lançaram a fintech no começo de 2021, mas estar longe de um grande centro se tornou um entrave. “Pensa na dificuldade de capital intelectual e contatos com o ecossistema de inovação e investimentos”, afirma Diesel ao NeoFeed. “Sabíamos que teríamos de nos mudar para São Paulo para avançar com a empresa.”

Isso só não aconteceu porque um obstinado grupo de 42 empresários do Rio Grande do Sul criou um hub de inovação que tem mudado o ecossistema gaúcho de startups e empreendedorismo. Liderados por Marciano Testa, fundador e presidente do conselho de administração do Agi, eles criaram o Instituto Caldeira, um hub de inovação que reúne 100 grandes empresas e mais de 700 startups conectadas.

“Há três anos, o Rio Grande do Sul viveu uma dor muito grande, com déficit fiscal, sem possibilidade de investimentos, que gerou até reflexos na segurança pública”, diz Testa ao NeoFeed. “Isso gerou também uma fuga de talentos, de capital humano.” Aflito com esse êxodo, Testa resolveu unir a iniciativa privada com o apoio do poder público.

Ao seu chamado, se juntaram importantes lideranças como José Galló, presidente do conselho de administração da Renner; Frederico Logemann, da família fundadora da SLC; Julio Mottin Neto, do Grupo Panvel; Marcos Boschetti, da Nelógica; Claudio Coutinho, CEO do Banrisul, entre outros pesos-pesados da economia gaúcha.

“O Rio Grande do Sul é um grande formador de mão de obra. Mas uma preocupação nossa é que estava tendo uma evasão de cérebros. Gostaríamos que as pessoas ficassem aqui. O estado precisava de uma grande mensagem de inovação”, diz Galló ao NeoFeed. Mas essa mensagem de inovação chegou a ser considerada utópica por alguns membros.

O espaço interno do Caldeira antes da reforma

O Instituto Caldeira foi criado em uma antiga fábrica abandonada da AJ Renner, em uma região degradada do 4º Distrito, em Porto Alegre. “Aquilo parecia um sonho distante, meio que uma utopia”, diz Claudio Coutinho, CEO do Banrisul, ao NeoFeed. “A primeira reunião que tivemos foi no galpão. Uma poeirada enorme, uma fábrica enorme, num frio do cão, me deu até medo de lá.” “Você vai lá hoje e é impensável que é o mesmo lugar de três anos atrás.”

O lugar foi batizado com o nome Caldeira porque ali no complexo industrial, que soma 100 mil metros quadrados, dos quais 22 mil foram inteiramente reformados, funcionava uma caldeira para levar energia elétrica à fábrica de tecidos, erguida na década de 1920, e às indústrias ao seu redor.

Hoje, a caldeira remete a uma efervescência de ideias e projetos, o retrato de como a união entre a iniciativa privada e o poder público podem transformar o ambiente de negócios. “Só no ano passado, o espaço abrigou mais de 100 eventos. Neste ano, já foram 120”, diz Pedro Valério, diretor-executivo do Caldeira, ao NeoFeed. São eventos como “O que é NFT?”, “O que é Web3”, “Inteligência Artificial com a IBM”, "Aplicações para Grafeno”.

Um dos vários eventos que acontecem por lá

Toda quinta-feira, as 11h, três startups são convidadas para ir ao instituto e apresentar suas soluções. Um dos programas voltados para as startups chama-se Ebulição, com apoio do Sebrae e do Banco de Desenvolvimento do Rio Grande do Sul, que forma 20 empreendedores por semestre. Além de formação com habilidades executivas, há a possibilidade receber aceleração e funding de R$ 300 mil.

Felipe Diesel, do Yours Bank, foi um dos participantes desse programa. Hoje, a fintech que tem uma pegada educacional para crianças, tem um espaço físico no Caldeira e venceu como Melhor Startup no South Summit, evento de inovação que aconteceu em Porto Alegre, em maio deste ano, quando competiu com 1 mil startups de 72 países.

Com 180 mil usuários cadastrados e 45 mil usuários ativos, a fintech se prepara para receber um aporte em uma rodada seed. “O Caldeira nos trouxe visibilidade e aqui é mais fácil fazer conexões com outras empresas”, afirma Diesel. O Yours Bank já tem uma parceria ativa com o Sicredi e está em conversas com o Banrisul, que conta com espaço fixo no hub de inovação.

Felipe Diesel (à esq.) e William Santos, da startup Yours Bank, de Santa Rosa (RS)

Mais do que proporcionar visibilidade para as startups, o centro de inovação também serve para trazer novos ares para empresas tradicionais. O próprio Banrisul é um exemplo disso. “O Banrisul é um banco estatal, é um banco pesado. Somos um elefante, mas tem que estar ao lado de um coelho que anda rápido, nem que seja para o coelho trazer para a gente a notícia de que lá na frente tem algo”, diz Coutinho. “E o meu coelho é o Caldeira”.

O banco conta com 500 agências, 9 mil funcionários, R$ 100 bilhões em ativos, R$ 42 bilhões em carteira de crédito e 4,5 milhões de clientes. Para inovar, tratou de montar um lab com suas squads no Caldeira. “Vamos levar agora toda a nossa área de educação corporativa para lá”, diz Coutinho.

Não é só o Banrisul que está atento à formação de profissionais. Segundo Valério, do Caldeira, as empresas que estão no Instituto têm quatro mil vagas abertas para profissionais com habilidades na área de tecnologia. De olho nisso e, claro, para criar oportunidades para jovens de escolas públicas, o Caldeira assinou um convênio com a secretaria de educação do Estado.

Pelo acordo, a cada semestre, 600 jovens receberão cursos no chamado Campus Caldeira, que será inaugurado no dia 7 de julho. Trata-se de uma área específica de educação em parceria com o Google for Education, a Oracle, a Microsoft, a Salesforce e a AWS. Ali serão ensinados inglês, full step em programação, iOS, Android e BigData. A Fundação Dom Cabral, por sua vez, está desenvolvendo os programas de formação.

Startups e empresas tradicionais dividem o mesmo ambiente

Testa, que é presidente do conselho de administração do Caldeira, enxerga o instituto com um sentimento de “give back”. Foi no Rio Grande do Sul que ele empreendeu e montou o Agi. “Foi onde tive êxito. Se eu tivesse uma mentoria e um ecossistema para me ajudar quando comecei, poderia ter desenvolvido a empresa de forma mais acelerada.”

O Instituto é uma entidade sem fins lucrativos, mas tem uma gestão profissional. O modelo de negócios é baseado em aluguéis dos espaços de inovação para grandes empresas. As startups, que também estão ali dentro, têm valores subsidiados. Desde o seu início, foram investidos R$ 30 milhões e o faturamento deste ano deve alcançar R$ 15 milhões – tudo reinvestido no lugar.

Para entrar ali é preciso passar por um crivo. “Não somos um coworking”, diz Valério. Tem que ter a ver com o universo da inovação, dar “match” entre empresas e startups. Um desses programas é o Conecta. As corporações dão desafios para startups desenvolverem as soluções. Além das startups baseadas por lá, o Instituto também disponibiliza os desafios para outras companhias ao redor do mundo.

Outra vertente que tem crescido são as missões de empresários para outros centros de inovação ao redor do mundo. Na semana passada, por exemplo, Valério conversou com o NeoFeed diretamente do Vale do Silício, onde acompanhava 15 empreendedores em uma imersão no centro onde estão as maiores empresas de tecnologia do mundo. Em breve, haverá missões para Israel e Portugal.

Quem vê a área onde hoje transitam cerca de 4,5 mil pessoas por dia não acredita como tudo começou. Em 2019, ao conversar com reitores das universidades PUC-RS, Unisinos e UFRGS, Testa soube que uma das dores era que os jovens, que frequentavam os labs das universidades, desenvolviam projetos e saíam do Estado. “Fiquei pensando em como poderia ajudar a criar um ecossistema forte no Rio Grande do Sul”, afirma Testa.

Com a ideia de resolver esse problema, Testa juntou as universidades, a iniciativa privada e o poder público para assinarem um pacto pela inovação. Mas tudo ainda estava no papel. Como não sabia por onde começar, ele foi visitar alguns dos principais centros de inovação do mundo. Foi para a China, viu o Dream Town, em Hangzhou; e para os Estados Unidos, onde visitou o Plug and Play, no Vale do Silício.

Marciano Testa, do Agi, mobilizou a iniciativa privada, as universidades e o poder público

“Quando eu comecei, não tinha a mínima noção do que era montar e desenvolver um hub de inovação. E o nosso não perde em nada para outros”, diz Testa. Mas, antes de o projeto ganhar vida concretamente, o empresário colocou na cabeça que o instituto tinha que ser privado, ter um espaço amplo para gerar uma comunidade intensa e, como diz o ditado, “jogou verde para colher maduro”.

Em uma entrevista ao jornal Zero Hora, de Porto Alegre, soltou que criaria um dos maiores hubs de inovação e educação do estado e, possivelmente, do País. Afirmou que teria empresas globais com seus labs, bancos, aceleradoras, VCs, aceleradoras, incubadoras e startups. No que a repórter perguntou onde seria, Testa respondeu que “tinha algumas ideias, mas estava aberto a receber sugestões da sociedade”. “E funcionou”, diz ele.

Depois da reportagem, começou a receber ofertas de empresários do setor imobiliário e, dentre algumas propostas, a família Renner ofereceu um complexo da antiga fábrica de tecidos da Renner, criada na década de 1920. Eram quase 100 mil metros quadrados de área, degradada.

Decidido o lugar, Testa começou a arregimentar o empresariado gaúcho para levantar a parte financeira. “Convidei os empresários para uma reunião ali no espaço. Foi um ato corajoso porque era um local abandonado, numa região degradada”, afirma. “Era também a possibilidade de recuperar a região.”

Muitos ficaram céticos em relação ao ressurgimento do lugar, mas o empresário levou a ideia em frente. Montou um road show e levantou R$ 10 milhões com 42 empresas para começar o projeto. No início das obras, em 2020, veio a pandemia. “Naquele momento, não tinha engajamento das empresas irem para lá”, diz Testa.

Como o Agi estava se mudando para Campinas (SP) e 1,3 mil funcionários ficariam no Rio Grande do Sul, Testa arriscou e puxou a fila levando o lab de inovação do Agi para o Caldeira, em um espaço de 400 posições. “Isso tirou o Caldeira da inércia e outras empresas levaram seus labs.”

Um complexo gastronômico e de entretenimento foi erguido no local

A região foi renovada. O shopping a céu aberto, com mais 35 mil metros quadrados, ganhou um impulso com a criação de um complexo gastronômico e de entretenimento chamado Mercado Paralelo. Em breve, terá academia e quadras de beach tennis.

“Estamos chamando a região de Distrito Caldeira. Impactou todo o bairro, a região está sendo renovada”, diz Testa. Isso está criando um movimento até de ressurgimento imobiliário no local. O número de startups mapeadas também aumentou. De acordo com a pesquisa RS Tech, produzida pelo Distrito, saltou de 422, em 2019, para 661, no ano passado.

Olhando para trás, Valério, que está no projeto desde o início, resume bem a gênese do Caldeira. “Foi um misto de loucura e fé. Começamos a obra em 11 de fevereiro de 2020 e um mês depois veio a pandemia. Íamos lançar um espaço de 22 mil metros quadrados com áreas de eventos e o mundo dizendo ‘acabou os escritórios’”. Mas a “loucura”, aquele projeto “utópico”, abriu as portas em março do ano passado e virou realidade.