Não foram os quase 700 litros de água derramados por metro quadrado no sábado e no domingo passados que fizeram emergir a solidariedade de Eudes Assis. No entanto, a calamidade em São Sebastião, no litoral norte paulista, empurrou o chef ao que ele faz de melhor: unir a gastronomia em prol de uma boa causa.

Geralmente, a causa são as 140 crianças do Projeto Buscapé, ONG da qual ele é vice-presidente. Do final de semana para cá, somaram-se a elas as mais de mil pessoas desabrigadas nas praias da vizinhança. De bate-pronto, o cozinheiro de 46 anos de idade correu para o seu restaurante, o Taioba, uma referência em Camburi.

Desesperou-se ao ver tudo enlameado, sem luz e nem água. Desesperou-se, contudo, em movimento. Grudado ao telefone, foi chamando reforços, postando nas redes sociais e rumando à cozinha do Buscapé. Enquanto organizava uma força tarefa para receber doações, com a adesão de muitos chefs e clientes, e preparar marmitas, seu filho, Gabriel Matos Sanguinete, abria uma vakinha online.

Em quatro dias, Eudes ainda não conseguiu voltar ao Taioba, nem contabilizar os quilos de vegetais, frango, arroz e feijão que já recebeu no processo de arrecadação. Porém, teve tempo de reunir mais de 200 voluntários numa força tarefa que, entre dia e noite, noite e dia, serviu mais de 10 mil marmitex. Fosse pouco, já arrecadou mais de R$ 1,127 milhão e espera nos próximos dias bater a meta de R$ 1,5 milhão.

Cafés da manhã, almoços e jantares são entregues ao exército deslocado para a linha de frente de buscas e salvamento, ao quartel da polícia militar que divide área com o Projeto e aos desabrigados. Dentre esses, estão as famílias de dez pequenos buscapés.

Fosse um ano típico, sim, haveria chuvas de verão e caudalosas águas em março fechando a estação. No entanto, com temporais à parte e sem catástrofes, o chef se dividiria entre o restaurante caiçara-gastronômico no Sertão de Camburi, os casamentos e eventos que realiza com seu catering na região e na curadoria do Arraiá Buscapé, festança junina que junta colegas renomados.

Projeto Buscapé chef Eudes
Voluntários na cozinha do Projeto Buscapé preparando marmitas (reprodução Instagram)

Alex Atala já esteve por lá, Erick Jacquin, Janaína Torres Rueda e Bel Coelho também. Helena Rizzo, Rodrigo Oliveira e Henrique Fogaça idem. Deram aulas e armaram barracas. Doaram todo o dinheiro da venda de seus pratos à ONG – é assim que ela banca aulas de artes, esportes, música e gastronomia à criançada em situação de vulnerabilidade nos arredores da praia de Boiçucanga.

No ano passado, o arraial contou com 80 chefs e chegou ao recorde de R$ 285 mil de receita líquida. Detalhe: essa é a receita com que o projeto conta ao longo de 12 meses, por isso Eudes não mede esforços para botar a quermesse que este ano chega à 11ª edição de pé. Caçula de 13 irmãos, nasceu a cinco praias dali, em Toque Toque Grande.

Foi o primeiro a pegar um avião, trabalhar em 36 países e a ter carrão. Virou orgulho da família e da comunidade local, em especial dos pescadores que tiveram o trabalho reconhecido e incentivado por ele.

Taioba restaurante chef Eudes
O Taioba, antes da inundação: referência gastronômica no litoral norte (reprodução Instagram)

Cozinhar é seu trabalho, e ama seu ofício, costuma repetir, mas é "na pescaria que me conecto com Deus. Quando estou no mar, pescando com meus amigos, tudo se renova",  Ainda mais, destaca ele, "quando é esse tipo de pesca tradicional muito modesta, em que o pescador vai com canoa e remo, puxa uma rede de cerco para pegar os peixes de época e depois devolve as espécies em extinção para o mar. É uma pesca bonita e genuína ainda muito presente nas comunidades caiçaras.”

Para além de garoupas, namorados, prejerebas e robalos, de preferência assados na folha de bananeira, o jovem que trabalhou no Fasano, em Paris e Lyon, na França, costuma preparar arroz lambe-lambe (à base de mariscos), frutos do mar ao molho provençal com arroz preto do Vale do Paraíba e pupunha do Sertão do Piavú e, claro, bolinhos de taioba.

A taioba está inserida em sua vida desde a infância, por ser um produto em abundância no litoral. Pode ser encontrada no meio do mato, no caminho da cachoeira e nos terrenos baldios. "Minha mãe preparava taioba quase todos os dias, por isso tem um valor sentimental”, explicou.

Projeto Buscapé com o chef Eudes
Os jovens cozinheiros do Projeto Buscapé com o chef Eudes (reprodução Instagram)

Em 2010, a fritura com a tal PANC (planta alimentícia não convencional) foi servida ao estreladíssimo Alain Ducasse, que a elogiou e ainda quis ver uma folha de perto. Verdade seja dita, foi a receita que mais deu projeção ao cozinheiro paulista. Quando começou na gastronomia, a cozinha caiçara era vista de forma pejorativa. "Era a cozinha rústica, do pobre da praia, do povo nativo que usava produtos colhidos no mato ou no mar. Ela só me trouxe recompensas”, gosta de reforçar.

Mais uma vez, graças a ela, seus pares estão se mobilizando. Renata Vanzetto, dona de dois bares, um buffet, seis restaurantes (um deles em Ilhabela) e influenciadora, como se nota no seu perfil de Instagram, intimou marcas a fazerem doações. À parte obter retorno, colocou um caminhão à disposição para entregá-lo ao colega.

À frente do La Cura, Ivan Santinho, banqueteiro preferido pelos foodies paulistanos, por sua vez, atendeu ao chamado de Eudes por utensílios profissionais. Nessas, abarrotou o caminhão da Ritz (empresa especializada em aluguel de material para festas) com fogão industrial, panelas e outros acessórios.

“Eu me disponibilizei a ir para lá, mas o subchefe do Eudes garantiu que não está faltando mão-de-obra, e sim esses equipamentos. O importante é ficar de olho, porque em momentos trágicos como esse, há muita doação no começo, às vezes é até complicado gerir. Depois, elas acabam esquecidas, o que não queremos que aconteça”.