Aos 90 anos, Mikhail Gorbachev passa seus dias entre o hospital e a mansão com ar decadente onde vive no subúrbio de Moscou. Mas nem a velhice nem a saúde debilitada impedem o último líder da União Soviética de fazer uma retrospectiva de sua vida em documentário intimista, em tom de despedida.
“Ainda me vejo como um socialista. Francamente, ainda vejo Lênin como nosso Deus”, diz o ex-governante, referindo-se a Vladimir Lênin (1870-1924), o fundador do Estado soviético. “Mas alguns acreditam que eu destruí o socialismo”, continua ele, em depoimento no filme “Gorbachev. Céu”.
Uma das atrações desta 26ª edição do Festival É Tudo Verdade, com programação online e gratuita até domingo, 18 de abril, o documentário retrata a solidão e a frustração de um homem no fim da vida. E o que é pior: Gorbachev sabe que não será lembrado como gostaria. Pelo menos, não na Rússia.
Seus conterrâneos o desprezam, acusando-o de ser um traidor e de ter destruído o império soviético. Vladimir Putin, o presidente da Rússia, chegou a definir o colapso do bloco socialista como a “maior catástrofe geopolítica’’ do século passado.
O que provavelmente consola Gorbachev é o fato de o resto do mundo, sobretudo a Europa, vê-lo como herói – como comenta o diretor do filme, o russo Vitaly Mansky, ao entrevistá-lo. Afinal, ele foi o arquiteto da Perestroika, introduzida em 1986.
Foi essa política de reestruturação que permitiu a abertura econômica na União Soviética e contribuiu para o término da Guerra Fria. Em 1990, Gorbachev chegou a ganhar o prêmio Nobel da Paz pelos seus esforços em acabar com as tensões entre a União Soviética e os EUA (e seus aliados).
“A História é uma senhora caprichosa. Leva bastante tempo”, afirma Gorbachev, que se mostra lúcido durante todo o filme. Ele ainda não perdeu as esperanças de um dia ser lembrado nos livros escolares russos, onde hoje mal é mencionado. “Isso requer paciência e habilidade”, completa o ex-governante, que só caminha com a ajuda de um andador.
Uma das figuras mais influentes do século 20, Gorbachev também ganhou popularidade no Ocidente por ter iniciado o processo de desarmamento. E ainda ficou conhecido pela abertura política que propôs com a Glasnost (transparência), implantando medidas que davam mais liberdade de expressão à população do bloco e aliviavam a censura sofrida pelos meios de comunicação soviéticos, abrindo caminho para a democracia.
No momento mais espinhoso do filme, o cineasta pergunta sobre o fim da URSS, declarado em 26 de dezembro de 1991, após a renúncia de Gorbachev. Mansky comenta que muitos países do mundo, principalmente na Europa e no continente americano, veem o colapso como uma “conquista” de Gorbachev, o que irrita o ex-governante.
“Não posso concordar com a formulação de que a União Soviética, nosso Estado, foi vítima da democracia”, afirma Gorbachev, que aparentemente renunciou por não encontrar outra saída. “Eu combati numa batalha séria. Lutei até o fim pela preservação da União Soviética. Essa era a minha posição. Como eu poderia desistir de mim mesmo?”, diz ele.
Na época, o Comitê Estatal para o Estado de Emergência, formado por oficiais do círculo mais íntimo de Gorbachev, tentou tomar o poder. Foi o que abriu as portas para o grupo de liberais liderado por Boris Yeltsin (1931-2007), o que acelerou a declaração de independência de países como Letônia, Estônia e Lituânia.
Quando o cineasta questiona como Gorbachev não percebeu o golpe que seus aliados tramavam, ele responde: “Significa que sou fraco. Não cortei a cabeça de ninguém. Mas não me arrependo de não ter usado os métodos de meus predecessores”, afirma o ex-líder, que chama Yeltsin de “bêbado’’, “idiota’’ e “maluco” no documentário.
Conforme Mansky destaca no filme, Gorbachev e Yeltsin muitas vezes são postos em pé de igualdade, como “democratas e libertadores, além de traidores e destruidores da URSS”. Mas, em última instância, quem seria o culpado pelo colapso? Gorbachev ou Yeltsin?
“Eu diria que não há uma responsabilidade direta. No entanto, eu poderia ter evitado isso. Eu tinha que ter feito. Ele tinha que ter sido mandado embora, pois tinha demonstrado que oscilava, que estava corrompido”, responde o ex-governante.
Ao longo de uma hora e quarenta minutos de filme, outras facetas de Gorbachev são reveladas. Ele declama poemas do russo Sergei Yesenin (1895-1925) e conta como a vida “perdeu o sentido” quando a mulher, Raisa, morreu em 1999, aos 67 anos, vítima de leucemia.
Diferentemente de tantos documentários sobre personalidades históricas, “Gorbachev. Céu” não se apoia em material de arquivo (exceto por algumas fotografias). Tudo é construído a partir de imagens atuais, o que revela a intenção de se concentrar mesmo na fase final de Gorbachev.
Vê-lo sozinho e fragilizado na velhice é algo desconcertante, ainda mais pela estatura política que Gorbachev alcançou no seu auge. Mas é como se o filme desse ao ex-líder a chance de passar a limpo a sua história, esclarecendo qualquer equívoco. “Lutei até o fim. Fiz o que pude”, resume ele, com quem espera ser absolvido um dia das acusações dos compatriotas.