O silêncio nas principais cidades americanas remete ao começo da pandemia. Dessa vez, porém, as ruas estão esvaziadas não por ordens de autoridades, preocupadas com o distanciamento social, mas por um misto de curiosidade e choque: estão todos em casa, acompanhando pela TV os desdobramentos do protesto violento em Washington DC, capital do país.
No dia em que o Congresso americano se reuniu para confirmar a posse do democrata Joe Biden, cuja chegada à Casa Branca está prevista para o dia 20 de janeiro, apoiadores do republicano Donald Trump invadiram o Capitólio e protagonizaram cenas jamais vistas, com direito a atos de vandalismo e violência. Uma mulher foi baleada no peito e, segundo o site Business Insider, não resistiu aos ferimentos.
A aglomeração começou logo pela manhã, quando Trump discursou aos seus simpatizantes e, mais uma vez, disse que "jamais irá conceder" a vitória ao seu adversário. O atual presidente dos Estados Unidos foi derrotado nas urnas, em eleição celebrada em outubro do ano passado. Joe Biden, o candidato democrata, acumulou 306 votos do Colégio Eleitoral, enquanto Trump somou 232.
Por conta da pandemia, todos os estados do país aceitaram votos por correio - uma modalidade que Trump, sem provas, acusa de ser fraudulenta. Todas as investidas do republicano para tentar reverter ou anular o resultado das eleições não surtiram efeito. O presidente teve, inclusive, uma conversa grampeada com o secretário da Geórgia, na qual o pressiona a "encontrar" 11.780 mil cédulas com votos a seu favor, o que lhe garantiria a vitória no estado.
Historicamente um território republicano, este ano a Geórgia foi azul. Joe Biden levou 49,5% dos votos válidos, enquanto Trump acumulou 49,3% dos votos. Essa onda democrata no estado chegou também ao Senado, numa eleição apurada nesta quarta-feira, 6 de janeiro.
Os candidatos Jon Ossoff e Raphael Warnock ganharam por uma diferença de menos de 1% de seus adversários republicanos, e levaram o controle da casa para as mãos dos democratas – o que não acontece desde 2014. No estado da Geórgia, os democratas não eram eleitos ao Senado desde 1992.
"Ainda é cedo para dizer se a Geórgia é um estado-pêndulo, porque, historicamente, somos republicanos", explica ao NeoFeed a cientista política Alexa Bankert, professora da Universidade da Geórgia. De acordo com a docente, uma série de fatores se alinhou para fazer com que a população fosse às urnas votar em um candidato democrata. "Acredito que o ataque que Trump fez, em 2017, a John Lewis foi um ponto bastante importante para explicar essa eleição", diz.
Falecido em julho de 2020, John Lewis foi um político e ativista muito respeitado na Geórgia e um dos maiores críticos do governo de Trump. Em 2017, os dois chegaram a trocar farpas, com o republicano dizendo que o distrito de Lewis "era horrível e mal conservado", o que provocou a ira da comunidade local.
Às cegas
O ocorrido no Capitólio foi tão surreal para os Estados Unidos que até o chefe do departamento de ciência política da Universidade da Geórgia, Scott Ainsworth, não tem respostas para os desdobramentos. "Eu sinceramente não sei o que acontece a partir de agora", conta Ainsworth ao NeoFeed.
Ele afirma que, até 20 de abril, os Estados Unidos vão navegar por águas nunca antes exploradas e que é impossível arriscar qualquer palpite. "A única previsão que me permito fazer é a de que o vice-presidente, Mike Pence, deve se manter distante de Trump".
O senador republicano Mitch McConnell deve fazer o mesmo. Fiéis "escudeiros" de Trump, Pence e McConnel se recusaram a prolongar a narrativa de fraude. Como vice-presidente e líder do Senado, Pence tinha o poder de barrar a nomeação de Biden, e Trump esperava que o fizesse.
"Se Mike Pence ficar do nosso lado, vamos ganhar a presidência. Muitos estados querem reparar o erro que cometeram ao certificar números incorretos e fraudulentos em um processo que NÃO foi aprovado pelos legisladores (e que deve ser)", postou o republicano no Twitter.
Antes do início do evento de hoje, Pence disse a jornalistas que cumpriria seu juramento e obedeceria às leis, desafiando o pedido do presidente. Trump voltou ao Twitter para se posicionar: "Mike Pence não teve a coragem de fazer o que deveria para proteger o nosso país e a nossa Constituição".
Diante da objeção de alguns de seus colegas republicanos quanto à eleição do estado do Arizona, que também elegeu Biden por uma margem apertada, de 49,4% contra 49,1%, o senador Mitch McConnell entregou um dos discursos mais fortes da sessão.
"Os eleitores, os tribunais e os estados falaram", disse McConnell, no plenário do Senado. "Se ignorarmos todos eles, isso prejudicaria nossa república para sempre. Se esta eleição fosse derrubada por meras alegações do lado perdedor, nossa democracia entraria em uma espiral mortal. Nunca veríamos a nação inteira aceitar uma eleição novamente".
Com o Congresso ainda reunido, os protestantes que cercavam o Capitólio conseguiram ultrapassar as barreiras de segurança e invadir o plenário. Os representantes foram escoltados e as cédulas com os votos do Colégio Eleitoral foram salvas.
Televisões do mundo inteiro transmitiram ao vivo a movimentação violenta dos manifestantes, que quebraram vídeos, forçaram portas e depredaram o Congresso. Joe Biden insistiu que Trump aceitasse a derrota e restaurasse a paz, instruindo seus apoiadores a deixarem os arredores do capitólio e voltando para suas casas.
O republicano, por sua vez, postou um vídeo de pouco mais de um minuto em seu perfil no Twitter. "Eu sei a sua dor. Sei que está machucado. A eleição foi roubada de nós. Foi uma lavada, e todo mundo sabe. Mas precisamos ir pra casa, precisamos ter lei e ordem", disse o presidente, reforçando, mais uma vez, que se trata de um resultado eleitoral fraudulento – e sem reconhecer sua derrota.
Diante das seguidas postagens com informações falsas ou imprecisas, o Twitter bloqueou o acesso de Trump à plataforma por um período de 12 horas. Caso insista em violar as regras da rede de microblog, o republicano pode ser permanentemente banido. Facebook e Youtube também removeram o vídeo em que o presidente fala olhando para câmera, afirmando que as eleições foram fraudadas.
À noite, por volta das 22h do horário de Brasília, a sessão de confirmação de Joe Biden foi retomada. "Defendemos nosso Capitólio hoje. Seremos sempre gratos aos homens e mulheres que mantiveram-se em seus postos para defender esse local histórico", discursou o vice-presidente Mike Pence na volta da sessão conjunta entre Câmara dos Deputados e Senado.
Arizona e Pensilvânia
Senado e Congresso ponderaram individualmente as objeções levantadas sobre as votações nos estados do Arizona e Pensilvânia. Já era esperado que diversos senadores republicanos votassem a favor da objeção, mas depois dos ataques ao Capitólio, pelo menos um deles mudou de ideia.
A senadora Kelly Loeffler, que perdeu a reeleição no seu estado da Geórgia, usou seu tempo de discurso para explicar a alteração de seu posicionamento. "Quando cheguei em Washington nesta manhã, tinha toda intenção de me opor à certificação. Contudo, depois dos eventos que aconteceram hoje, sou obrigada a reconsiderar e não posso, em boa consciência, objetar", disse em plenário, sob aplausos dos colegas.
Ambos os pedidos de objeção, tanto do Arizona quanto da Pensilvânia, foram negados pelo Congresso americano, com direito a alguns discursos memoráveis. O republicano Mitt Roomey, por exemplo, ao reconhecer a derrota de Trump, disse: "a melhor forma de mostrar respeito aos eleitores que estão insatisfeitos é dizendo a verdade. Esse é o peso e o dever de um líder".
Às 3:30 am do horário local (5:30 am do horário de Brasília), a vitória de Joe Biden foi ratificada para assegurar sua posse no dia 20 de janeiro. Kamala Harris será, oficialmente, a primeira mulher eleita vice-presidente dos Estados Unidos. Donald Trump, que ainda corre o risco de ser afastado em seus últimos dias no cargo, sairá pela porta dos fundos.
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