Como o professor e escritor israelense Yuval Noah Harari costuma defender, “a cooperação é a chave para a sobrevivência”. Autor dos best-sellers Sapiens: Uma Breve História da Humanidade e Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã, ele se refere especialmente à relação entre nações.
Mas, no mundo contemporâneo, quando os conhecimentos e as ideias proliferam em ritmo exponencial, o axioma de Harari pode ser estendido para os mais variados campos da atuação humana. Na indústria 4.0, a máxima se revela imprescindível.
De um lado, as empresas têm acesso ao know-how de professores e cientistas e ao que há de mais moderno em termos de ciência. De outro, com o apoio financeiro e a compreensão das necessidades do mercado das companhias, a academia consegue direcionar e agilizar as pesquisas. Do match entre elas, as soluções ganham escala mais rapidamente. É bom para todo mundo. Para as corporações, os centros de estudos, a economia e a sociedade.
"Nunca como agora a colaboração entre empresas e universidades foi tão importante", diz Leandro Rossi, diretor executivo do Mining Hub, em conversa com o NeoFeed, "É dessa maneira que funcionam os grandes celeiros de inovação, como o MIT [Massachusetts Institute of Technology], nos Estados Unidos."
Lançado em 2019, em Belo Horizonte, o Mining Hub é a primeira comunidade de inovação aberta do mundo focada única e exclusivamente na cadeia da indústria minerária. “No Brasil, ainda há alguma resistência para unir as duas pontas, mas isso está mudando", afirma Rossi.
Dada a importância do setor, na urgência da transição energética, a mineração tem avançado a passos largos na consolidação das parcerias entre empresas e universidades.
Também em Minas Gerais, o Centro Federal de Inovação Tecnológica (Cefet) desenvolveu e testou a produção de um bloco para a construção civil que substitui a areia comum pelos rejeitos da atividade minerária — colocando em prática, dessa forma, os preceitos da economia circular.
Criado a partir de um convênio com a Vale, o projeto consumiu R$ 25 milhões de reais e dois anos e meio de investigações. "A parceria resolveu um enorme desafio que encontramos no ambiente acadêmico, que é levar a pesquisa da bancada do laboratório para a indústria", diz Augusto César da Silva Bezerra, professor do departamento de engenharia de transportes do Cefet e coordenador do trabalho.
A Vale construiu uma fábrica específica para a produção do novo material, localizada na cidade de Itabirito, na região metropolitana de Belo Horizonte. Atualmente são produzidas duas linhas de blocos: uma para pavimentação, usada nas operações da companhia; e outra para o setor da construção civil. A produção é capaz de absorver cerca de 30 mil toneladas de rejeitos anualmente.
Graças à colaboração com a Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a Vale inaugurou, em junho passado, a primeira fábrica de supressor de poeira à base de garrafas PET recicladas.
Foram dez anos de pesquisas até à formulação de um produto capaz de reduzir o impacto provocado pelo descarte de três materiais muito poluentes — o plástico, o material minerado, o supressor forma uma película protetora, que evita a dispersão da poeira durante o transporte e o armazenamento. E, de quebra, resgata do lixo as garrafas PET.
O peixe robô
Histórias de sucesso como as da Vale se contam por todo o Brasil, em vários setores da economia. Na Bahia, uma parceria entre o Senai Cimatec (Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia), o Centro Alemão de Pesquisa em Inteligência Artificial, a Agência Nacional de Petróleo (ANP), a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação e três companhias petrolíferas resultou na criação do "flatfish".
Espécie de drone submarino, o peixe robô é usado para inspeções no fundo do mar, de plataformas de petróleo. Ele é capaz, por exemplo, de encontrar um ponto de potencial vazamento, passar por dutos para avaliar as condições da estrutura e as necessidades de reparo, entre outras funções.
No Brasil, por trás de boa parte dos projetos de cooperação entre indústria e academia, está a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). Sua função é justamente a de fazer essas conexões com a agilidade exigida pelos tempos atuais. "Entre a primeira reunião e o início do projeto, gastamos cerca de dois meses apenas", diz José Menezes, gerente de relações com o mercado da Embrapii.
Para fazer parte do sistema, um centro de pesquisa precisa, antes, passar por um credenciamento, que vai levar em consideração a experiência na área, a infraestrutura para desenvolver o projeto e a qualificação da equipe, entre outros requisitos. Se tudo estiver correto, é criada no lugar uma unidade Embrapii. Uma mesma universidade pode ter várias delas. Atualmente, são 93 espalhadas pelo País — mais do que o dobro de 2020, quando havia 44.
Desde a fundação da Embrapii, em 2014, 2.695 projetos foram apoiados por 1.808 empresas clientes e nos quais foram investidos R$ 5 bilhões. O custo é dividido entre capital público (dos ministérios da Educação; Saúde; Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços; Ciência, Tecnologia e Inovação e do BNDES), as companhias e as unidades de pesquisa, que arcam com a menor parte, 16,4%.
Pelos parâmetros da Nasa
Para mostrar o impacto das parcerias na concretização de soluções que possam, de fato, beneficiar a sociedade, a química Ana Flávia Nogueira utiliza uma escala da Nasa, a agência espacial americana. Como ela explica ao NeoFeed, o sistema mede o grau de maturidade de novas tecnologias.
Chamada de TRL (sigla em inglês para “nível de prontidão tecnológica”), a régua tem nove faixas. Na primeira, os princípios básicos do projeto foram observados e reportados. Na sexta, o protótipo de um foguete, por exemplo, já está em teste. E, na última, está completamente pronta para operar.
"Nos melhores cenários, a academia normalmente chega até o nível 6. Para que uma criação chegue até a fase final, depende de uma empresa que a produza", diz Ana Flávia, diretora do Center for Innovation on New Energies (CINE), formado pela Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Instituto de Pesquisas Energéticas Nucleares (Ipen).
Criada em 2018, a instituição funciona com investimento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e da multinacional Shell. Atualmente, estão em curso quatro grandes linhas de pesquisa. Uma investiga a produção de hidrogênio de fontes renováveis, considerada a grande promessa para a transição energética. Outra foca na fabricação de células solares à base do cristal perovskita 100% nacional.
Na terceira frente, os pesquisadores do CINE estudam o armazenamento avançado de energia, como baterias, células a combustível e supercapacitores. E, na quarta, o uso de inteligência artificial no design de novos materiais.
A primeira fase do programa do centro se estendeu por cinco anos e consumiu US$ 20 bilhões, divididos igualmente entre Shell e Fapesp. Prevista para ter a mesma duração, a nova etapa acabou de começar. "Continuamos em busca de novos parceiros. Recentemente fizemos workshops para o Itaú sobre mobilidade e transição energética, por exemplo", diz Ana Flávia.
Além de estabelecer novas cooperações, está nos planos do CINE criar startups para o desenvolvimento de sua inovações. "Nossa ideia é dar vazão à mão de obra qualificada e abundante que temos aqui”, afirma a química. “São cerca de 200 pesquisadores, gente que está terminando doutorados e pós-doutorados." E, assim, com a união entre indústrias e universidades, o Brasil caminha rumo a um futuro mais sustentável e equânime.