Quando chegou ao Brasil, em outubro de 2020, Thomas Dubaere cumpriu um trajeto que perseguia há pelo menos 12 anos. Responsável, até então, pelas operações do grupo hoteleiro Accor no Reino Unido, o executivo belga alimentava o sonho de liderar os negócios da empresa na América do Sul.
Ele havia buscado esse objetivo em outras duas oportunidades. Em 2008, a crise econômica frustrou suas intenções. Já em 2014, o escolhido foi o francês Patrick Mendes que, ao ser nomeado chief commercial officer global, abriu as portas para que Dubaere desembarcasse, enfim, na região.
A persistência demonstrada nessa jornada certamente contribuiu para que ele fosse nomeado para o cargo. E será ainda mais determinante para o desafio que o executivo tem pela frente: conduzir a divisão em meio aos duros impactos gerados pela pandemia em todo o setor.
“Não estou aqui por acaso”, diz Dubaere, ao NeoFeed, arriscando algumas palavras em português, fruto das quatro horas de aulas semanais para se adaptar à nova posição. “Minha motivação funciona melhor quando estou em ambientes complicados e que demandam pensar fora da caixa.”
Os números recentes da Accor na região dão a dimensão do quanto essa característica será exigida. Em 2020, a receita do grupo recuou 58%, para € 76 milhões. No período, a taxa de ocupação nos 393 hotéis da empresa na América do Sul ficou em 23%.
Esses indicadores refletem apenas uma parcela dos efeitos da pandemia no resultado global da Accor. No ano passado, a empresa, avaliada em € 8,2 bilhões, reportou uma receita de € 1,62 bilhão, o que representou uma queda de 54,8% sobre 2019.
O cenário não impede que o grupo, dono de marcas como Ibis, Novotel, Pullman e Sofitel, tenha um plano agressivo de expansão para a América do Sul. Com 90% de seus hotéis em operação e com a perspectiva de uma retomada a partir do segundo semestre, a empresa projeta, entre aberturas e conversões, fechar 2021 com mais 30 hotéis na região.
“Nossa ambição é chegar a 800 hotéis na América do Sul nos próximos anos”, diz Dubaere. “E, dentro desse investimento total, entre 50% e 60% serão destinados ao Brasil.”
O pacote inclui a orientação de reforçar a presença nas categorias de lifestyle e de luxo, com foco, nessa última frente, nos resorts. Um dos exemplos é a inauguração, prevista para 2024, do Ibis Styles Maragogi, no litoral norte de Alagoas, o primeiro resort da marca em questão.
Outro projeto recente que ilustra a relevância do País e da região no mapa da Accor foi o Thermas de Olímpia Resorts By Mercure, em Olímpia, interior de São Paulo, o primeiro hotel do grupo no mundo a receber a assinatura da nova marca By Mercure.
Na conversa, Dubaere fala ainda sobre outros temas e estratégias. Entre elas, os esforços da Accor para transformar os espaços ociosos nos hotéis, exemplificados por iniciativas como a marca de coworking Wojo; a intenção de trazer novas bandeiras ao País; e o uso de tecnologia no dia a dia das operações. Confira:
Como foi assumir esse posto em um dos períodos mais desafiadores da companhia e de toda a indústria hoteleira?
Eu não teria tentado vir à América do Sul três vezes se não fosse realmente inflexível quanto a essa escolha. Foi um desafio, sim, mas minha motivação funciona melhor quando estou em ambientes complicados e que demandam pensar fora da caixa. Eu amo a cultura, as pessoas, a comida, a música e, certamente, o clima da região, que é muito melhor do que em Londres. Mal posso esperar para descobrir o continente. A pandemia acabou impactando um pouco, porque meu plano era viajar por toda a América do Sul nos primeiros seis meses. Então, essa é a parte difícil. Mas isso acontecerá em questão de meses. Estou motivado e pronto.
Quais são suas prioridades na região?
Quando Sébastien Bazin, nosso CEO, me pediu para vir para a América do Sul, eu perguntei justamente o que ele esperava que eu fizesse aqui. E a resposta foi cristalina: precisamos consolidar ainda mais a nossa liderança e dobrar a rede nos próximos anos. Hoje, temos cerca de 400 hotéis na região, sendo 323 no Brasil. E nossa ambição é chegar, entre aberturas e conversões, a 800 empreendimentos nos próximos anos. Vamos abrir 30 hotéis em 2021 e temos um pipeline bastante saudável de mais de 100 hotéis já na mesa.
É possível revelar o investimento total e o qual o montante reservado ao Brasil?
Ainda não temos esse número fechado. Mas, dentro desse pipeline de 100 empreendimentos, eu diria que 65% serão no Brasil. E, dentro do investimento total, entre 50% e 60% serão destinados ao País.
Qual será o modelo predominante nessa expansão?
Eu diria que 70% da expansão será feita via franquias, especialmente com bandeiras como By Mercure, que é a nossa nova marca, um pouco mais flexível. Existe um mercado hoteleiro independente grande e muito potencial de crescimento na América do Sul. E, infelizmente, tenho que dizer isso, as crises sempre trazem oportunidades. Podemos ajudar esses empresários e eles podem nos ajudar a crescer.
Qual é o prazo para alcançar essa meta de dobrar a rede?
É difícil cravar, mas digamos, talvez, cinco anos. Isso vai depender de quantas operações conseguiremos integrar ao nosso negócio. Hoje, cerca de 70% do mercado na América do Sul ainda são hotéis independentes. E, como nosso setor está se tornando tão complexo, é muito difícil para eles seguirem com suas próprias pernas. Com as conversões, podemos ajudá-los a fazer essa transição até que estejamos de volta aos níveis de 2019.
Quando você espera que o setor recupere os patamares pré-pandemia?
Nós achávamos que seria em 2024. Mas os sinais estão nos mostrando que será em 2023. Estamos em 110 países e podemos dizer que a retomada tem sido relativamente mais rápida do que pensávamos. A partir do momento em que as pessoas veem que a vacinação está avançando e que os hotéis são seguros, o negócio volta. Hoje, na América do Sul, 90% dos nossos hotéis estão abertos. E estamos investindo fortemente em protocolos de segurança e higiene, e trabalhando para que os 10% restantes voltem a operar.
Como você avalia o ritmo de vacinação no Brasil?
Se compararmos com boa parte dos países, o Brasil está na média. O grande problema, e isso não se restringe ao País, é que não há oferta suficiente de vacina. Mas estou confiante. O Brasil tem um sistema de logística de vacinação ótimo e, uma vez que a oferta seja equacionada, entendo que será relativamente rápido. Acredito que, de setembro em diante, teremos boa parte sob controle e os negócios começarão a voltar. E não só o lazer, mas também as viagens corporativas.
Qual dos dois segmentos tem melhores perspectivas?
O retorno em lazer será muito mais rápido. Falando de Brasil, especificamente, cerca de 90% do negócio é doméstico. Com certeza, esse segmento crescerá ainda mais do que antes da pandemia.
Por quê?
Nós fizemos um estudo global com milhares de hóspedes, de diferentes segmentos, e 77% apontaram os protocolos de higiene e de segurança como prioridade absoluta. Na sequência, cerca de 70% disseram que vão querer viajar mais por lazer, mas para locais com ambientes externos, conectados à natureza. As pessoas ficaram presas por tanto tempo e estão valorizando mais essas questões. Então, é aqui que vemos mais oportunidades de crescimento no futuro.
De que maneira esse contexto vai influenciar os investimentos na América do Sul?
No Brasil, por exemplo, somos muito fortes nas bandeiras econômicas, como Ibis, no midscale, e também em marcas premium, como Pullman. Mas há dois segmentos que queremos impulsionar na região e que vão ao encontro de um lazer mais característico. Um deles é o lifestyle. Essa é uma frente que está ganhando prioridade não só na América do Sul.
Por que esse conceito está ganhando relevância no mapa da Accor?
Hoje, a categoria representa apenas 2% do mercado como um todo. Mas ela vem crescendo cerca de 10%. Isso mostra claramente que há cada vez mais demanda por essa oferta. O bom desse conceito é que ele mescla negócios e lazer, algo que foi acelerado pela Covid-19. Nós costumávamos ter negócios puramente corporativos e puramente de lazer. Agora, isso será cada vez mais combinado.
Dentro do investimento total na região, entre 50% e 60% serão destinados ao País
Qual é o portfólio da Accor dentro desse perfil?
Hoje, já temos 13 marcas de lifestyle, distribuídas em todos os perfis e voltadas a diferentes públicos e bolsos.
Há planos de trazer algumas dessas marcas para o Brasil e a região?
Sim, absolutamente. Nós já temos um Mama Shelter no Rio, mas traremos mais. E estamos olhando para bandeiras como Tribe, Jo&Joe e SLS.
E qual é o segundo segmento que vocês irão priorizar nessa expansão na América do Sul?
O de luxo, em especial, com resorts. Temos tanta natureza e alguns dos lugares mais bonitos do mundo na região. Você pode ir à praia, às montanhas, escalar, esquiar. E isso abre um grande leque potencial para o nosso crescimento.
Há alguma cidade ou região no Brasil que vocês irão priorizar?
Nós já estamos presentes em todas as principais cidades no País. Mas eu diria que olharemos mais os resorts à beira-mar. O Brasil é um grande país, com lindas paisagens e algumas das praias mais bonitas do mundo. Tem cultura, música, culinária. Então, por que tem apenas 10% de fluxo de turismo internacional? Uma das prováveis razões é que não temos oferta suficiente nesses locais. Então, daremos mais atenção a esse aspecto.
E quanto ao segmento corporativo? Quais é o foco nessa área?
Na nossa pesquisa, 70% dos entrevistados acreditam que essas viagens desaparecerão. E aqui, posso dar o meu exemplo. Quando eu estava em Londres, você não imagina quantas vezes voei ou peguei o trem até Paris para reuniões de 2, 3, 4 horas. Não vamos mais fazer isso. Aprendemos que é possível fazer esses encontros com a tecnologia que temos à disposição. E não são todas as empresas que contam com essas instalações. É por isso que investimos em uma parceria global com a Microsoft, para garantir que em todos os hotéis onde essa demanda existir tenhamos todos os melhores recursos para a realização de reuniões híbridas.
Sob essa ótica, a Accor trouxe a marca Wojo, de coworking, ao Brasil. Como essa oferta está evoluindo e quais são os planos para essa bandeira?
O que ninguém gosta nessa indústria é o que chamamos de metros quadrados vazios. São os espaços e instalações que não são usados e apenas estão lá. Então, nós decidimos transformar parte deles em áreas de coworking. E estamos dando um passo além dos 100 hotéis onde já temos esses pontos no País para chegar a cerca de 200 hotéis até o fim do ano, com a entrada nos países hispânicos da região. Os parceiros donos dos empreendimentos gostam desse conceito porque o investimento necessário para a transformação é próximo de zero. E isso entra na tendência de trabalhar a partir de qualquer lugar. No caso dos clientes, nem todos têm a estrutura adequada para fazer isso. É aqui que tentamos atrair as pessoas. Elas têm todas as facilidades de trabalhar nas nossas instalações e combinar suas necessidades profissionais com o lazer.
E como a tecnologia vai se encaixar no dia a dia dos empreendimentos?
Hoje, você pode entrar em um hotel completamente modernizado e reformado. Mas, infelizmente, ainda vai parar na recepção e responder a uma série de perguntas antes de pegar a sua chave. Então, o que estamos fazendo é nos livrar dessa carga administrativa. Demos um passo adiante nesse ano quando começamos a implantar o que chamamos de chave digital. E tudo será feito antes da sua chegada. Já temos exemplos fora da América do Sul e posso dizer que, antes do fim do ano, você entrará em um lobby que não será mais um lobby. Não haverá uma recepção, mas sim alguém vindo até você e dizendo: olá, senhor, como posso ajudá-lo? Basicamente, faremos o check-in em um minuto. E, com o celular, você poderá ir para o seu quarto e a porta se abrirá.
Quais são os próximos passos dentro da estratégia de transformar os metros quadrados vazios?
Temos que tornar nossas áreas comuns mais atraentes. Para que os hotéis não sejam um lugar apenas para ficar, dormir e comer, mas também para se divertir. Essa é certamente a segunda etapa em que estamos trabalhando. Daqui a alguns anos, essas áreas serão multiuso e polivalentes.