Em 2008, quando Pequim sediou pela primeira vez uma edição dos Jogos Olímpicos, a imprensa americana decidiu adotar um critério diferente para o ranking do quadro de medalhas. Em vez de classificar os países pelo número de ouros, como historicamente é feito pela mídia internacional, preferiu ordenar pelo total de pódios conquistados.
Evitaram, com isso, mostrar aos compatriotas que os EUA estavam sendo ultrapassados pelos chineses, deixando escapar uma hegemonia olímpica que durava desde 1996. A última vez que os americanos haviam perdido a liderança foi em 1992, em Barcelona, quando o topo do quadro ficou com a Comunidade de Estados Independentes (CEI), que reunia atletas de estados que haviam feito parte da União Soviética, extinta um ano antes.
A disputa pelo reinado olímpico guarda um paralelo com o que tem acontecido com a ordem geopolítica mundial. Se até o início dos 1990 os EUA rivalizavam com os soviéticos, em uma corrida para ser a maior potência política e econômica do mundo, na chamada Guerra Fria, agora a briga de poder é com a China, depois de um longo tempo em que os EUA não tiveram oponentes.
Quem chama atenção para esta nova Guerra Fria é o americano Scott Galloway, escritor, empreendedor, professor da Universidade de Nova York e um dos gurus do Vale do Silício. "Voltamos a um mundo bipolar. Um duopólio de superpotências será novamente o princípio organizador. Desta vez, quem mede forças com os EUA é a China", disse o escritor, em artigo publicado em seu blog.
De 1990 para cá, o crescimento chinês tem ofuscado a expansão de qualquer outro país, ressalta Galloway. No período, a China registra uma expansão média anual do PIB de 13%. Os EUA, por seu turno, avançam a um ritmo de 4,35%.
Ao citar dados do Banco Mundial, Galloway destaca também que o número de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza na China caiu de 750 milhões, na década de 1970, para menos de 10 milhões atualmente. E que a quantidade de chineses com um patrimônio superior a US$ 110 mil já é superior ao de americanos.
Se a ideia é medir forças, é preciso analisar também o poderio militar. Embora invista menos do que os EUA, a China tem o maior exército do mundo, com 2,2 milhões de pessoas na ativa. E é “o estado melhor posicionado para se juntar aos EUA no primeiro escalão”, segundo uma análise do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, mencionada pelo guru do Vale do Silício.
“A China é também o único país que compete com os EUA pela liderança em concessões de patentes, lançamentos espaciais e medalhas olímpicas”, afirma o escritor.
As comparações lembram a Guerra Fria dos livros de história, certo? Sim. Mas, para Galloway, a Guerra Fria do século 21 tem muitas diferenças. Para ele, o relacionamento entre as duas grandes potências do momento é mais cooperativo e menos belicoso.
“A Muralha da China é mais permeável do que a Cortina de Ferro, econômica e culturalmente”, disse, em uma referência aos países do Leste Europeu, alinhados com a União Soviética. “A produção da China depende de economias saudáveis dos EUA e da Europa, para fornecer aos clientes. Antes da pandemia, havia mais de 300 mil estudantes chineses estudando na América.”
Trata-se de uma cooperação, porém, com limites. A China, que tem dificultado a vida de empresas chinesas que querem abrir capital nos EUA, planeja propor novas regras que proíbam as companhias com grandes quantidades de dados confidenciais de consumidores de seguir esse caminho, segundo apuração do jornal econômico The Wall Street Journal.
O movimento ocorre após a chinesa Didi - que realizou o seu IPO em Nova York no fim de junho deste ano - ter sido alvo de medidas de autoridades regulatórias da China, como a suspensão do cadastro de novos usuários e a revisão de práticas de segurança.
Para Galloway, porém, a queda de braço com interesses corporativos é um problema vivido pelos dois países, como ocorre em outras frentes. As duas nações, prossegue ele, lutam também contra a influência das mídias sociais na educação, na produtividade e no bem estar das pessoas.
“E ambos os países geraram uma elite econômica que está procurando subir na escada e abrigar seus descendentes na riqueza dinástica”, escreve Galloway.
A forma como cada um lida com esses problemas, porém, é diferente. E isso está basicamente ligado aos sistemas políticos. “Se você perder a reeleição em uma democracia, poderá contratar um empresário para palestras e dormir durante as reuniões do conselho. Se você for deposto em um estado de partido único, geralmente leva um tiro”, compara.
Nesse cenário, os líderes chineses, com controle único e nenhum plano para deixar o poder, têm a capacidade e a motivação para pensar em longo prazo, afirma o escritor. “A China tem jogado um longo jogo por gerações, e isso é visível. Os EUA têm governado via Twitter”.
Para o bem ou para o mal, a China tem mostrado que é possível um mundo com menos freios e contrapesos, diz Galloway. Ele citou o exemplo da intervenção chinesa no Alibaba, o gigantesco grupo de varejo do bilionário Jack Ma. A companhia foi multada em US$ 2,8 bilhões, em abril, por práticas anticompetitivas.
“O que antes parecia um golpe nas articulações de Jack Ma, em menos de um ano se transformou em uma revisão sistemática da agenda nacional. A mensagem do presidente da China, Xi Jinping, é clara: os interesses nacionais não cederão aos privados”, escreve Galloway.
Os três principais pontos da agenda do país são, na visão de Galloway: combater abusos monopolísticos; combater plataformas tóxicas para o bem-estar das crianças; e proteger a mobilidade econômica. Para o escritor, esta é uma Guerra Fria para definir qual sistema socioeconômico se mostrará mais bem-sucedido.
“Os EUA prevaleceram na Guerra Fria (do século 20) porque seu sistema produziu retornos econômicos superiores”, diz Galloway
“Os EUA prevaleceram na Guerra Fria (do século 20) porque seu sistema produziu retornos econômicos superiores”, avalia o professor. “Uma maneira simples de descrever o resultado é que o capitalismo democrático derrotou o socialismo autoritário. Em certo sentido, a disputa entre China e EUA determinará se a democracia ou o capitalismo foi o fulcro da vitória. A China abraçou a economia capitalista... dentro de um estado autoritário.”
Na visão de Galloway, existe a possibilidade real de que o sistema chinês, por mais moralmente falho que seja, produza maior prosperidade do que o modelo dos EUA. E o retorno para o acionista, ele diz, é um produto da oportunidade e da execução.
O presidente da China pode até ter atrapalhado a vida de Jack Ma e de outros empreendedores chineses de tecnologia, mas é difícil imaginar que ele vá derrubá-los de vez, acredita Galloway.
“Xi precisa do motor do crescimento econômico para continuar funcionando, visto que ainda existem 300 milhões de pessoas vivendo com menos de US$ 5,50 por dia na China. Este milagre econômico está apenas pela metade”, ressalta.
Para o guru do Vale do Silício, se a China for a potência dominante em 2040 e contar uma história de sucesso econômico, isso mostrará a todos que a sobrecarga regulatória no mundo não afetará a riqueza que os acionistas de empresas desfrutam.
“Quem poderá dizer? Meu dinheiro ainda está nos EUA, pois tenho esperança de que olharemos para lá e aprenderemos”, conclui.