A desvalorização do dólar – que viu sua cotação encolher 10% este ano em comparação a uma cesta de outras moedas – somada ao cenário de incerteza da economia mundial com a política comercial do presidente americano Donald Trump já vinha impulsionando a corrida global pelo ouro, cujo mercado vive seu melhor momento em meio século.

A decisão recente do governo chinês de ancorar a redução de sua dependência global do dólar americano ao ouro tende a abrir um novo ciclo de valorização do ativo – que subiu 30% desde janeiro e dobrou de valor nos últimos dois anos.

Segundo revelou a agência Bloomberg, a China está tentando se tornar uma guardiã de reservas soberanas de ouro estrangeiras. Em outras palavras, o país asiático quer armazenar o ouro comprado por outros países.

Para analistas financeiros, a medida deve causar um impacto duplamente positivo no mercado do ouro global no médio prazo - o ouro bateu recorde na terça-feira, 23 de setembro, aos US$ 3.791 a onça-troy.

Primeiro, por incentivar governos a investir mais nesse ativo. Segundo, ao torná-lo uma prioridade financeira nacional, a China dá sinais de que pretende continuar comprando e mantendo ouro como alternativa segura às suas reservas cambiais.

A estratégia chinesa envolve a participação da Bolsa de Ouro de Xangai (SGE, na sigla em inglês) para cortejar bancos centrais de países aliados. Segundo a agência, ao menos um país do Sudeste Asiático já teria aderido à proposta.

A SGE, fundada em 2002, cresceu e se tornou a maior bolsa de ouro física do mundo em volume de negociação, processando aproximadamente 54 mil toneladas de ouro em 2023, representando 75% do volume global de negociação de ouro.

A utilização da SGE mira avançar sobre a hegemonia do Banco da Inglaterra (o banco central do Reino Unido), que fornece serviços de custódia de ouro há mais de 325 anos – o que dá uma ideia da ambição chinesa de fortalecer sua posição no mercado global de ouro e no sistema financeiro.

A China vem sistematicamente construindo suas reservas de ouro enquanto desenvolve infraestrutura para dar suporte a suas ambições no mercado global. O Banco Popular da China (PBOC), o BC chinês, detém reservas de ouro chinesas que totalizam aproximadamente 2.235 toneladas em 2024 - menos da metade do que o Banco da Inglaterra mantém em seus cofres.

Atualmente, a China ocupa o quinto lugar global em reservas de ouro de bancos centrais, de acordo com o Conselho Mundial do Ouro.

Recentemente, o governo chinês adotou várias medidas para abrir seu mercado interno de ouro, incluindo o estabelecimento de uma estrutura regulatória abrangente para os participantes do mercado e o incentivo ao desenvolvimento de estratégias de investimento em ouro.

O mercado interno de ouro da China — que abrange joias, barras e moedas — é o maior do mundo em termos de consumo, com 950 toneladas de ouro em 2023 (último dado disponível).

A grande dúvida é se o país asiático vai conseguir enfrentar a concorrência e tradição do Banco da Inglaterra, cujos cofres guardam mais de 5 mil toneladas das reservas mundiais, avaliadas em quase US$ 600 bilhões.

Londres processa aproximadamente 90% das negociações globais de ouro no mercado de balcão, de acordo com a London Bullion Market Association, demonstrando seu domínio avassalador no mercado. Para operadores, se os países optarem por armazenar seu ouro na China, deverão abrir mão da facilidade e da liquidez de Londres.

Guinada

A guinada no mercado de ouro é reflexo de uma série de mudanças geopolíticas iniciadas desde a invasão russa da Ucrânia, em 2022, culminando com o recente início do ciclo de queda de juros nos Estados Unidos.

O congelamento de aproximadamente US$ 300 bilhões em reservas cambiais russas pelo sistema financeiro internacional em 2022, após a invasão da Ucrânia, uma ação sem precedentes, gerou sérias preocupações em muitos países quanto à segurança de suas próprias reservas cambiais.

Desde então, bancos centrais em todo o mundo aumentaram as compras de ouro. O World Gold Council informou que essas compras de ouro por BCs atingiram 1.037 toneladas em 2022, o nível mais alto desde 1967.

A China, que sempre esteve na mira dos EUA como eventual alvo de sanções, passou a aumentar suas compras nos últimos dois anos. As reservas de ouro representam aproximadamente 4,9% do total de reservas cambiais da China, uma porcentagem relativamente pequena em comparação com muitas nações ocidentais, sugerindo potencial para novos aumentos.

A eleição e posse de Trump, em janeiro, alavancaram ainda mais essa estratégia chinesa. A desvalorização do dólar somada a investidas truculentas de Trump no primeiro semestre contra o presidente do Federal Reserve, Jerome Powell, exigindo que o banco central dos EUA cortasse os juros, levou a novas altas do ouro.

No início de agosto, o porrete tarifário de Trump acabou sendo responsável pelo maior recorde de quatro décadas da cotação do ouro, após a revelação de que o governo dos EUA havia incluído as importações de barras de ouro de 1 kg no pacote de tarifas de 39% imposto na véspera por Trump à Suíça – que controla 70% do mercado global de refino de ouro.

A revogação da medida, dias depois, não foi suficiente para fazer o preço do ouro recuar. A decisão do Fed de começar a cortar os juros nos EUA, este mês, deu um sinal importante no prosseguimento do processo de valorização do metal.

Se o Fed continuar a cortar as taxas nos próximos meses, os rendimentos dos títulos do Tesouro dos EUA, os treasuries, cairão junto, tornando os títulos menos atraentes em comparação a ativos que não pagam juros, como o ouro.

Além disso, taxas mais baixas aumentam a perspectiva de inflação mais alta dos EUA, contra a qual o ouro serve como proteção nos portfólios dos investidores.

Vários pesos-pesados de Wall Street vêm chamando a atenção para o potencial de crescimento do ouro, como gestor de fundos hedge David Einhorn, da Greenlight Capital, o "Rei dos Títulos" Jeffrey Gundlach e Ray Dalio, fundador da Bridgewater Associates.

No mês passado, Dalio recomendou a clientes que invistam entre 10% e 15% do portfólio em ouro como uma proteção contra a perda de valor do dinheiro, o endividamento dos governos e crises monetárias - o que reforça a estratégia chinesa de apostar no ativo.