No início de fevereiro, o grupo brasileiro GenComm pediu recuperação judicial, com uma dívida de R$ 46,3 milhões. À primeira vista, a empresa parecia repetir o caminho de tantas outras companhias diante da crise dos últimos anos. Alguns episódios, no entanto, chamavam a atenção nessa trama.

Três meses antes, o grupo, até então desconhecido, havia comprado o braço local de e-commerce da gigante japonesa Rakuten, que incluía serviços como criação, hospedagem e gestão de pagamento de canais de comércio eletrônico.

Com o acordo repentino, os varejistas começaram a ter os valores de suas vendas bloqueados no sistema de pagamentos da plataforma. E com receio de novos prejuízos, suspenderam as operações de suas lojas virtuais.

Na última terça-feira 14, esse enredo suspeito, que despertou dúvidas sobre saída da divisão da Rakuten do País, ganhou um novo capítulo. O juiz Tiago Henriques Papaterra Limongi, da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, aceitou o pedido de falência da GenComm.

Com a decisão, os mais de 1,5 mil lojistas que figuravam entre os credores da recuperação judicial agora veem as chances de recuperarem o dinheiro mais remotas. E para agravar a situação, os impactos desse imbróglio em suas lojas online estão sendo reforçados por outro grande desafio.

“Nós tivemos semanas de puro desespero. Estávamos na lona e chegamos a correr o risco de quebrar”, diz Ricardo Mira da Silva, proprietário da Medjet, loja virtual de equipamentos e acessórios de saúde e fitness, de Joinville (SC). “E quando começamos a nos levantar, veio o coronavírus.”

Com R$ 158 mil retidos na plataforma, Silva decidiu suspender as vendas no site da Medjet em janeiro. Ele não consegue estimar o prejuízo com a paralisação no canal, responsável por 40% da receita da empresa, que conta ainda com uma loja física. Nesse cenário, foi preciso postergar pagamentos a fornecedores e de impostos.

Em março, a Medjet migrou o canal para outra plataforma. Mais básico, o novo site tem, porém, recursos limitados, o que amplia o dilema da empresa em tempos do Covid-19, onde as vendas online são a válvula de escape do varejo. “Tivemos que colocar no ar muito rápido, ainda capenga”, afirma Silva. “Queimamos etapas, mas não podíamos mais ficar sem a loja.”

Gigante na berlinda

Enquanto cada lojista busca formas diferentes para sobreviver ao tombo em suas operações online, agravado pelo Covid-19, em outra frente, há alguns consensos entre esses empresários. Em um primeiro plano, os fatores que pesaram na escolha pela plataforma da Rakuten são muito parecidos.

Conhecida como a Amazon do Japão e pelo patrocínio a grandes marcas do esporte, como Barcelona e Golden State Warriors, a Rakuten foi fundada em 1997. Com cerca de 1,4 bilhão de usuários, o grupo tem atuação em mais de 70 vertentes de negócio e presença em mais de 30 países. Avaliada em US$ 12 bilhões, a gigante japonesa reportou uma receita de US$ 11,5 bilhões em 2019.

Os números da operação e a solidez comumente associada às empresas da terra do sol nascente contribuíram para que os lojistas ouvidos pelo NeoFeed optassem pela companhia. E a busca por clientes no País, ao que tudo indica, passava por outros ingredientes.

Avaliada em US$ 12 bilhões, a Rakuten reportou uma receita de US$ 11,5 bilhões em 2019

Versão local do evento global realizado anualmente pela empresa, o Rakuten Expo era um desses recursos. A edição de 2018 impressionou Silva, da Medjet, que na época tinha a Rakuten como uma das alternativas para migrar sua loja online desenvolvida dentro de casa para uma plataforma profissional.

“Eu vim para São Paulo e fiquei de queixo caído. Assinei o contrato na hora”, diz o empresário sobre o evento que contou com a participação de nomes do varejo nacional e internacional, entre eles, Yaz Iida, presidente da Rakuten nos Estados Unidos.

Silva destaca, no entanto, que os meses seguintes trouxeram outra visão da empresa. “Eles gastavam dinheiro em eventos como esse, mas o produto em si e o atendimento eram ruins e decepcionantes”, afirma. “E, no fim, nós ficamos com a conta.”

Outro cliente antigo da empresa, dono de uma loja virtual de móveis do interior de São Paulo, vai além. “A venda da operação, na surdina, foi claramente uma fraude, uma armação para que a Rakuten saísse ilesa nesse processo”, diz o empresário, que pediu para não ser identificado.

Ele contabiliza um prejuízo de R$ 1,2 milhão por conta dos problemas com a plataforma. E já promoveu um corte de 30% em seu quadro de funcionários para tentar equacionar a situação. “Diferentemente da Rakuten, que fugiu do País, tenho que honrar minhas dívidas.”

A falência já era esperada pelos varejistas, que buscam agora meios para acionar legalmente a Rakuten. “Existem indícios no processo que abrem espaço para que a empresa seja responsabilizada”, diz João Paulo Filippin, sócio do escritório Baião e Filippin, de Florianópolis (SC), que está assessorando alguns lojistas. Ele diz, no entanto, que processos desse porte, podem durar de sete a oito anos.

O advogado chama a atenção para o fato de que todos os problemas alegados pela GenComm para pedir recuperação judicial e, posteriormente, falência, foram construídos na gestão da Rakuten. Um dos principais elementos foi um contrato firmado com a XiaomiBRZ, uma revendedora não autorizada da Xiaomi, que vendia smartphones da fabricante chinesa a preços inferiores à média do mercado.

Entre fevereiro e setembro de 2019, a XiaomiBRZ teve um faturamento médio mensal de R$ 10 milhões com sua loja online e chegou a representar 50% das vendas realizadas na plataforma da Rakuten. Entretanto, cerca de 60% desses pedidos não foram entregues, o que trouxe reclamações de consumidores e um rombo de R$ 5,5 milhões para a operação local da companhia japonesa.

“Existem indícios no processo que abrem espaço para que a Rakuten seja responsabilizada”, João Paulo Filippin, advogado e sócio do escritório Baião e Filippin

Uma linha de crédito no valor de R$ 65 milhões que a Rakuten mantinha com o Itaú Unibanco é outro componente nesse script. Com as dificuldades financeiras que vieram à tona após a venda da operação, o banco passou a recolher qualquer valor recebido para amortizar a dívida.

Um detalhe chama a atenção. Como garantia, a Rakuten incluiu os valores que deveriam ser repassados aos lojistas, o que poderia configurar crime de apropriação indébita.

“A venda para uma empresa desconhecida e a sequência dos fatos dá a impressão de que a falência estava programada”, diz Filippin. “E que a intenção era alongar a recuperação judicial para distanciar a operação da saída da Rakuten. Parece um enredo montado, mas que talvez tenha chegado ao desfecho antes do esperado.”

Um vírus no caminho

A falência da GenComm afetou diversos pequenos comerciantes que usavam a plataforma da companhia. E a situação ganhou contornos ainda mais críticos com o coronavírus.

Os planos da joalheria Julio Okubo para restabelecer sua operação online também foram agravados pela pandemia. Fruto de um contrato estabelecido em 2011 com a Rakuten e ainda hospedado na antiga plataforma, o site representava apenas 3% das vendas da joalheria. O canal funcionava, no entanto, como uma importante vitrine da empresa, fundada em 1965 e dona de seis lojas físicas em São Paulo.

Com R$ 164 mil bloqueados e um prejuízo estimado de R$ 100 mil das vendas suspensas desde fevereiro, a varejista decidiu aproveitar a migração forçada a uma nova plataforma para redesenhar o site. O projeto já consumiu cerca de R$ 50 mil e estava previsto para ficar pronto em 90 dias. Nesse meio tempo, porém, surgiu o coronavírus.

“Estamos correndo para lançar até o fim de abril”, diz Mauricio Okubo, diretor de marketing da joalheria. Com as lojas físicas fechadas por conta do Covid-19, a empresa não vende praticamente nada há um mês. “Em um momento onde boa parte dos sites está faturando mais do que o normal, nós estamos vendendo apenas pelo Instagram ou WhatsApp. Mas não é a mesma coisa”, afirma.

“Em um momento onde boa parte dos sites está faturando mais do que o normal, nós estamos vendendo apenas pelo Instagram ou WhatsApp”, Mauricio Okubo, diretor da joalheria Julio Okubo

Ele observa que muitos clientes de menor porte da GenComm estão em situação delicada ou já quebraram. No caso da joalheria, Okubo ressalta que o maior prejuízo é não ter uma loja virtual, de fato, há dois meses. “Isso afeta muito a nossa imagem perante os clientes, que não sabem de todo o contexto”, diz. “É algo impossível de quantificar.”

Sócio da GF Casa Decor, loja de decoração online, Vinicius Soares também aponta essa questão como o maior problema. “Ter uma loja virtual e não conseguir vender impacta nossa credibilidade”, observa Soares. Com um investimento de R$ 100 mil, o site da empresa, desenvolvido pela Rakuten, estava no ar há 18 meses.

O canal começava a engrenar, com um faturamento mensal na casa de R$ 100 mil, cerca de 15% da receita da empresa, que tem ainda uma loja física e uma fábrica de persianas e placas 3D. Soares estima um prejuízo de R$ 700 mil com a situação, o que inclui os R$ 303 mil retidos na plataforma e as vendas paralisadas no site desde fevereiro.

Há pouco mais de um mês, quando negociava a migração para uma nova plataforma, o avanço do coronavírus fez com que a empresa optasse por adiar o projeto. “Decidimos esperar, muito pelo receio de que o novo site não fosse entregue, em virtude da pandemia”, diz. A solução foi direcionar parte das vendas para o WhatsApp e reforçar a presença em marketplaces.

Posicionamento

Procurada, a GenComm não retornou ao pedido de entrevista. O escritório Bocuzzi Advogados, que representa a empresa no caso, disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que não iria se manifestar.

Em nota enviada ao NeoFeed, a Rakuten disse estar desapontada com a situação da GenComm desde a venda da operação e observou que sente por todos os lojistas que foram afetados. A empresa também ressaltou que já realizou centenas de acordos em todo o mundo em seus 23 anos de atuação e que sempre procurou operar de forma ética para a satisfação de todas as partes interessadas.

No caso da transação com a GenComm, a Rakuten destacou que cumpriu todas as leis locais, fez todas as divulgações públicas necessárias e que todos os dados da operação foram abertos à compradora. E finalizou:

“A Rakuten não se envolveu com o negócio desde que a GenComm assumiu o negócio em outubro de 2019. Não podemos assumir a responsabilidade ou responder a perguntas adicionais sobre o que aconteceu na operação desde que ela foi vendida.”

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