Em outubro de 2019, a empresa japonesa Rakuten vendeu sua divisão de plataformas de comércio eletrônico no Brasil. O negócio foi fechado com a Tog Brazil Holding, companhia com sede no estado americano de Delaware, que passou a ser única sócia da brasileira NexGenexis na operação, rebatizada de GenComm. Concluída sem um anúncio oficial, a transação em nada lembrou o barulho feito com o desembarque oficial da gigante asiática no País, em 2011, por meio da compra da também brasileira Ikeda.

Passados pouco mais de três meses, o acordo firmado sem qualquer alarde está deixando dezenas de varejistas na mão. Na segunda-feira 3, a holding NexGenesis, responsável pela GenComm, entrou com um pedido de recuperação judicial na 1ª Vara de Recuperações Judiciais e Falências, em São Paulo.

No processo, conduzido pelo escritório Boccuzzi Advogados, o grupo cita uma dívida de R$ 46,3 milhões. E elenca uma lista de quase 1,5 mil credores. A relação inclui fornecedores e, em sua maioria, clientes da plataforma.

Assim como a aquisição, divulgada em um breve e-mail aos parceiros, o pedido de recuperação judicial foi recebido com um misto de surpresa e preocupação pelos lojistas virtuais hospedados na plataforma. E só reforçou os questionamentos que esses clientes vinham alimentando sobre a saída repentina da Rakuten da operação.

Desde então, conforme apurou o NeoFeed, boa parte desses lojistas tem enfrentado problemas com pagamentos retidos pela agora nomeada GenComm. Entre outras ofertas, o portfólio da empresa inclui o RakutenPay, operação que gerencia e repassa os valores referentes às vendas realizadas por meio da plataforma.

Agora, sob a possibilidade de uma recuperação judicial, as perspectivas desses varejistas ganharam contornos ainda mais críticos. “Muitos lojistas, especialmente os pequenos, estão correndo o risco de quebrar”, afirma Leonardo Mei, proprietário da loja de joias Piuka, de Catanduva, interior de São Paulo, cujas vendas online na plataforma respondem por 60% da receita.

Com um valor retido de R$ 964 mil, o empreendedor não consegue estimar os prejuízos adicionais nesse cenário. Desde que a plataforma deixou de repassar os pagamentos, a Piuka, suspendeu suas vendas pelo canal, que está funcionando apenas como um catálogo de seu portfólio.

Diante do que classifica como “os piores dias de toda a sua operação”, Mei decidiu concentrar o atendimento via WhatsApp e montou uma operação de guerra para acelerar o desenvolvimento do projeto de um novo canal online para retomar as atividades.

Cliente da Rakuten desde 2014, ele não isenta a responsabilidade da companhia nesse processo. “Queremos um pronunciamento global do grupo”, afirma. “Como pode, em três meses, uma empresa ser vendida e, na sequência, pedir recuperação judicial?”, questiona.

Procurada, a Rakuten não retornou o pedido de entrevista do NeoFeed até o fechamento dessa reportagem. Por meio de sua assessoria de imprensa, o escritório Boccuzi Advogados, disse que não poderia comentar o tema.

A GenComm afirmou, por meio de comunicado enviado ao NeoFeed, que “está passando por dificuldades financeiras, em razão disso, buscou a recuperação judicial”. A empresa acrescentou que prefere não fazer outras declarações, em virtude de o processo estar sendo apreciado pela Justiça.

Suspeitas

Diante da ausência de informações e da velocidade dos acontecimentos, outros clientes levantam dúvidas nesse contexto. “Como todo o processo foi muito rápido, muitos lojistas acham que fomos vítimas de um golpe, de uma fraude", diz Raquel Pires Portugal, dona do e-commerce carioca de fitness e de moda praia Habiller.

Ela já vinha identificando o repasse de valores inferiores desde novembro. E, estima um prejuízo de cerca de R$ 40 mil com os pagamentos bloqueados e as vendas que está perdendo, em função do problema. Especialmente em um período no qual a procura por seus produtos cresce.

“Estou migrando o mais rápido possível para outra plataforma para aproveitar o que resta do verão e fazer promoções para girar rápido meu estoque”, afirma Raquel. “Mas outros lojistas estão em dúvida se mudam, porque, além de tudo, isso poderia configurar quebra de contrato.”

A falta de interlocução com a empresa é outro problema apontado. “Não tivemos nenhum suporte deles, a não ser a orientação para procurar a Justiça”, diz Roberto Rios, sócio do site Regina Rios, de calçados femininos. “E só ficamos sabendo da recuperação judicial por terceiros”, acrescenta.

Rios conta que está controlando o estoque com um volume mínimo de ofertas para manter o site no ar. As vendas, no entanto, estão suspensas desde ontem. Já os pagamentos, deixaram de ser repassados pela GenComm a partir de meados de janeiro.

Recuperação

O pedido protocolado pela GenComm e as demais empresas da holding traz mais detalhes sobre a operação da Rakuten, a aquisição e os desdobramentos do acordo. Segundo o documento, o negócio no País nunca foi lucrativo.

Nos 12 meses anteriores à aquisição, o prejuízo contabilizado ficou em cerca de R$ 40 milhões. Além das perdas, o montante inclui um investimento de R$ 12 milhões em pesquisa e desenvolvimento.

Mesmo sob esse contexto, o grupo ressalta que decidiu assumir o controle do negócio, no qual já tinha uma pequena participação, pois entendia que seria capaz de reestruturar a operação e tirá-la do vermelho. Especialmente por conta das boas perspectivas do e-commerce no País.

A companhia observa, porém, que, ao assumir a operação, percebeu que as dificuldades eram ainda maiores. Entre os fatos novos que vieram à tona, estava um contrato com a XiaomiBRZ, uma revendedora não autorizada de produtos da fabricante chinesa de smartphones Xiaomi, que comercializava os produtos da marca a preços inferiores da média do mercado.

A empresa em questão chegou a responder por 50% das vendas realizadas na plataforma da Rakuten, com um faturamento médio mensal de R$ 10 milhões entre fevereiro e setembro de 2019. A GenComm alega, no entanto, que a revendedora deixou de entregar 60% dos pedidos realizados nesse intervalo, o que gerou uma série de contestações de consumidores.

Segundo a companhia, houve diversas tentativas de resolução do caso junto a XiaomiBRZ. Sem sucesso nessa frente, a GenComm afirma ter sido obrigada a assumir o passivo gerado, com um saldo de R$ 5,5 milhões.

Outro fator apontado pela empresa que contribuiu para ampliar as dificuldades financeiras e o fluxo de caixa para tocar a operação foi o corte de uma linha de crédito que a Rakuten mantinha com o banco Itaú Unibanco, no valor de R$ 65 milhões. Além do bloqueio, a GenComm afirma que a instituição passou a recolher qualquer valor recebido pelo grupo como forma de amortizar a dívida contraída, incluindo os pagamentos das vendas realizadas pelos lojistas.

No documento, a empresa também relata algumas medidas que está implantando para reestruturar o negócio. A primeira delas é a redução do portfólio de dez para três produtos. Acompanhada por uma nova política de preços, em decorrência da percepção que os valores cobrados estavam defasados.

Outra iniciativa foi a redução no quadro de funcionários, de cerca de 200 para 68. Bem como uma negociação para reduzir em 50% o valor de locação do imóvel que abriga a sede da empresa, na zona oeste de São Paulo.

Com essas e outras estratégias, a GenComm diz já ter reduzido as perdas mensais de R$ 2 milhões, em outubro, para os atuais R$ 250 mil.

Gigante asiática

Fundada em 1997, a Rakuten está presente em mais de 30 países, por meio de mais de 70 diferentes linhas de negócio. Famosa por sua atuação no comércio eletrônico global, a empresa marca presença ainda em segmentos como mídia, energia, finanças, investimentos e esportes, setor pelo qual ganhou ainda mais fama, como patrocinadora do Barcelona.

Com cerca de 1,3 bilhão de usuários de seus serviços em todo o mundo, a empresa tem um valor de mercado de US$ 10,9 bilhões e apurou uma receita líquida de US$ 8,3 bilhões no acumulado de janeiro a setembro de 2019. O faturamento consolidado de 2018 ficou em US$ 9,9 bilhões.

No Brasil, a presença atual da empresa está restrita a Rakuten Marketing, divisão de negócios de publicidade digital. Antes de se desfazer de seus negócios de comércio eletrônico no País, o grupo investiu em algumas mudanças de rota na estratégia para o setor.

A operação deu seus primeiros passos no mercado local com uma oferta no modelo de marketplaces. Entretanto, com os resultados pouco animadores nesse formato, ainda pouco em voga na época no País, o grupo decidiu focar seu portfólio nos produtos e serviços de tecnologia para as lojas virtuais de terceiros.

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