O empresário Fernando de Castro Marques, presidente e dono da empresa farmacêutica União Química, um dos maiores laboratórios de medicamentos do Brasil, com faturamento projetado para R$ 4,1 bilhões neste ano, tem experimentado um clima de guerra por conta da pandemia do coronavírus e está no meio de algumas batalhas.
Nos últimos dias, uma delas é para produzir e entregar rapidamente para todo o País os anestésicos do chamado kit entubação, usados por pacientes de covid-19 e que estão escassos no mercado. “Temos trabalhado 24 horas, inclusive sábado e domingo, para a produção desses produtos”, diz Marques.
A União Química é uma das maiores fabricantes do País desse tipo de medicamento e Marques está, literalmente, no olho do furacão. “Tenho recebido ligações de secretários de saúde de várias cidades pedindo esses medicamentos. É uma operação de guerra para atender a todos”, afirma.
A segunda batalha é para aprovar a vacina russa Sputnik V no Brasil. Desde janeiro, a União Química vem tentando importar 10 milhões de doses da vacina russa, usada em mais de 60 países. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deve se reunir nesta segunda-feira, 26 de abril, para bater o martelo sobre o assunto.
Além da intenção de importar, a União Química investiu R$ 100 milhões para fabricar a vacina no Brasil e, a partir de junho, conseguirá produzir 8 milhões de doses por mês. Boa parte disso, será vendida a estados do Norte e Nordeste que encomendaram 60 milhões de doses. Mas, independentemente da aprovação, a empresa vai exportar para países como Argentina, Uruguai, Peru, Bolívia, entre outros.
Na entrevista que segue, realizada na semana passada, Marques diz que sua empresa vai criar uma divisão de vacinas para produzir imunizantes de vários tipos, afirma que há um excesso de zelo da Anvisa, comenta sobre as acusações de lobby e a atuação de executivos da Pfizer e Janssen, analisa a politização ao redor da vacina e ataca os gestores do Butantan e da Fiocruz.
“A discussão foi totalmente politizada. É uma defesa dos interesses das duas empresas estatais que mantêm esse monopólio junto ao PNI (Programa Nacional de Imunizações)”, diz Marques ao NeoFeed. E prossegue. “Temos excelentes cientistas na Fiocruz e no Butantan, mas os administradores são tecnocratas despreparados e politizados. Não são pessoas que poderiam estar fazendo uma administração competente dentro de grandes organizações.” Acompanhe a entrevista:
Mais de 390 mil pessoas morreram de Covid-19 no Brasil, faltam vacinas no País e a Sputnik está sendo usada em 60 países. Na sua opinião, por que ela ainda não foi aprovada?
O que está acontecendo é que existe um excesso de zelo por parte das autoridades. Houve e existe muito preconceito em relação à Rússia, que é um país totalmente voltado aos interesses internos e não dá confiança para o que os outros acham. A Rússia não tem multinacionais farmacêuticas, mas tem muita tecnologia. O Instituto Gamaleya é reconhecido mundialmente como um dos maiores centros de estudos de epidemiologia do mundo, com inovações diversas patenteadas e que desenvolveu vacinas importantes como para Ebola e Sars. Existe um preconceito do bloco europeu e dos Estados Unidos. O presidente da Rússia, o Vladimir Putin, está fazendo a Sputnik ser uma bandeira muito importante no intuito de ajudar a população mundial a se ver livre dessa pandemia.
Como surgiu essa parceria entre a União Química e o Instituto Gamaleya?
Estávamos próximos deles por conta de outro projeto nosso na área de saúde animal para introduzir no mercado russo. Quando veio a pandemia, embarcamos no assunto da Sputnik. Assinamos um contrato com o RDIF (Fundo Russo de Investimento Direto) de transferência tecnológica para atender o Brasil e os países da América Latina.
Então a empresa vai exportar a partir do Brasil?
Exatamente, esse é o nosso contrato. Os nossos técnicos estiveram na Rússia e os russos estiveram aqui. É tudo verticalizado. Estamos produzindo o IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) na nossa fábrica de biotecnologia em Brasília chamada Bthek. E a nossa fábrica de Guarulhos, uma unidade muito grande, se adequou para a produção da Covid-19. Fomos aprovados agora no fim de março para a produção da Sputnik, isso está publicado no Diário Oficial da União.
“Houve e existe muito preconceito em relação à Rússia, que é um país totalmente voltado aos interesses internos e não dá confiança para o que os outros acham”
Mas como está a questão da aprovação com a Anvisa?
Em 15 de janeiro, pedimos a autorização de uso emergencial para trazermos 10 milhões de vacina Sputnik para embarcar ainda no primeiro trimestre. Infelizmente, a Anvisa não liberou e perdemos essas 10 milhões de vacinas no primeiro trimestre. Conseguimos ainda para o segundo trimestre mais 10 milhões de vacinas para embarque imediato diretamente de Moscou.
Isso para a importação. E para a produção?
O nosso processo industrial está andando. Até mesmo porque temos certeza de que a vacina é eficaz e não terá problema para ser registrada aqui no País. Se, por acaso, retardar um pouco vamos remeter essa vacina para outros mercados como Argentina, Uruguai, Peru, Bolívia e outros países da região.
Independentemente se for aprovada pela Anvisa, ela será produzida para exportação?
Não tenha dúvida. Já temos intenção de compra de sete países.
Você trabalha com a hipótese de a Anvisa não aprovar?
Eu descarto completamente essa hipótese. O excesso de rigor na parte regulatória é importante. Nós, como uma empresa brasileira, temos obrigação de superar todos esses obstáculos.
“Se, por acaso, retardar um pouco vamos remeter essa vacina para outros mercados como Argentina, Uruguai, Peru, Bolívia e outros países da região”
Quanto a União Química investiu nesse projeto?
Estamos investindo, inicialmente, R$ 100 milhões. Já tínhamos a unidade fabril em Guarulhos, em São Paulo, e a Bthek, em Brasília. Agora estamos fazendo investimentos em reatores e outros equipamentos que estão chegando para ter o IFA da Sputnik verticalizado em território brasileiro, sem dependência nenhuma.
Por que está entrando nesse mercado?
A vacina da Covid vai funcionar de forma semelhante a da gripe (H1N1), todo mundo vai ter de se vacinar anualmente. Mas nós tomamos a decisão entrar no mercado de vacinas, importando e produzindo no território brasileiro. Não essas mais antigas que são produzidas pela Fiocruz e Butantan. Tem uma gama de vacinas que nos interessa, como a da gripe e outras que estamos estudando. A nossa empresa vai ter uma divisão de vacinas. Existe uma realidade das vacinas em clínicas particulares, esse é um mercado existente. Vamos atuar também junto ao PNI (Programa Nacional de Imunizações) como uma alternativa.
Qual é a capacidade de produção da empresa?
Temos uma expectativa de passarmos a produzir 8 milhões de unidades mensais, entre maio e junho. Hoje o preço que oferecermos é coisa de US$ 12,30 a importada. Quando estivermos produzindo aqui, acreditamos que poderemos baixar para menos de US$ 10 por unidade.
“Temos uma expectativa de passarmos a produzir 8 milhões de unidades mensais, entre maio e junho”
Caso aprovada pela Anvisa, 100% das vacinas seriam destinadas para o Brasil?
Nosso compromisso, como empresa brasileira, é atender o mercado brasileiro. É o que está acontecendo nos Estados Unidos com a Pfizer e a Janssen. É o que está acontecendo na Índia, com a explosão da doença. Acho que vai ficar difícil o embarque de vacina para o Brasil.
Esse desejo de fabricar aqui no Brasil surgiu como?
Da pandemia para cá realmente nos aprofundamos no assunto de vacina e da grande possibilidade que pode ser a produção de vacinas no nosso País para o nosso País e para outros mercados. O Brasil tem de estar preparado para outras pandemias. O laboratório estatal depende de o Estado botar dinheiro lá, de licitação para comprar equipamento, é toda uma morosidade que a iniciativa privada não tem. Eu decido, mando, compro, pago, faço e acabou.
Quanto demorou para você preparar tudo?
As coisas começaram em janeiro e nesta semana já estaremos envasando Sputnik em Guarulhos.
As primeiras doses vão para onde?
Temos uma carta de intenção de compra de dois milhões de doses por parte da Argentina. Também tem do Uruguai, do Peru e Equador. Temos sido visitados por embaixadores de outros países a pedido da Rússia.
Você acha que a discussão sobre a vacina foi muito politizada?
Foi totalmente politizada. É uma defesa dos interesses das duas empresas estatais que mantêm esse monopólio junto ao PNI. Primeiro, achavam que iam dar conta do recado. É um erro total porque, esse achar que dá conta do recado em cima do importado, de algo que vem pronta de fora, é complicado. A Índia, com a população que tem e do jeito que está, as pessoas querem a vacina lá.
Circulou um áudio seu nas redes sociais reclamando da politização. O que você tem a dizer sobre isso?
Na realidade, esse áudio foi um desabafo que fiz para o Luciano Hang, presidente da Havan. Foi num momento em que estava muito aborrecido com a história, desabafei e disse a ele que estava muito estressado com essa situação da Fiocruz e do Butantan, que politizaram o assunto vacina. A própria imprensa começou a dizer: ‘ah, é a vacina do Bolsonaro’. Depois, começaram a dizer que era a vacina dos governadores do Nordeste, da esquerda, do Lula. Pô, vacina é para o Brasil, não é para o Bolsonaro ou para o Lula! Vacina é para salvar a vida das pessoas, não é para ser politizada. Essa situação criada e administrada de forma politizada, tanto aqui em São Paulo como no Rio de Janeiro, é o maior absurdo do mundo. Temos excelentes cientistas na Fiocruz e no Butantan, mas os administradores são tecnocratas despreparados e politizados. Não são pessoas que poderiam estar fazendo uma administração competente dentro de grandes organizações. Não existe competência administrativa profissional nem no Butantan e nem na Fiocruz. Isso eu afirmo com toda a garantia. Não existe competência.
Mas o governo federal, principalmente o presidente Jair Bolsonaro, demorou para encampar a campanha de vacinação. Só recentemente, por exemplo, ele ligou para o Putin. Não acha que demorou a acontecer?
Na realidade, orientado pelas informações que chegaram a ele, ele tomou tardiamente a decisão de ligar para o Putin e conversar com ele. Como a cabeça do Putin entende que o presidente do Brasil, um país presidencialista, fala para ele que aqui há uma agência federal independente e que precisa inspecionar. Um país que quem manda é o presidente, caso da Rússia. A Angela Merkel, da Alemanha, ligou para o Putin e pediu a tecnologia da Sputnik. A Itália também solicitou. É uma coisa humanitária que está sendo feita. Recebi essa tecnologia sem pagar royalty para Moscou. Aqui, ficam falando da União Química, que tem um executivo, o Rogério Rosso (ex-deputado federal e ex-governador do Distrito Federal), que trabalha comigo desde 2019, e fez 19 viagens internacionais trabalhando como executivo. ‘Ah! A União Química está fazendo lobby!’.
E está?
Lobby? O que fizeram agora os executivos da Pfizer e da Janssen? Foram no presidente do Senado pedir uma mudança de lei para que as empresas não sejam responsabilizadas por efeitos colaterais futuros. O nosso Congresso fez uma lei para que o Brasil compre vacinas dessas duas origens sem essas empresas serem responsabilizadas por efeitos colaterais futuros. Isso é uma coisa incrível, né? Agora, só quero fabricar Sputnik e não estou me negando a responder por qualquer efeito colateral futuro. Nem nós, nem a Rússia. Temos certeza de que isso não vai acontecer porque a plataforma tecnológica que foi utilizada já é existente.
“O que fizeram agora os executivos da Pfizer e da Janssen? Foram no presidente do Senado pedir uma mudança de lei para que as empresas não sejam responsabilizadas por efeitos colaterais futuros”
Você disse que na Rússia o presidente manda e faz. Mas é importante termos aqui no Brasil uma agência reguladora, independente, para não ser uma decisão top down. Você não acha?
É fundamental. Para você ter uma ideia, eu comprei, em 2014, a planta industrial da Novartis em Taboão da Serra e Embu, que pega dois municípios. Passei a fabricar produtos Novartis para Brasil e 16 países da América Latina. Então, o padrão de avaliação de qualidade da nossa companhia pesou profundamente nessa decisão. Somos o maior prestador de serviços da Novartis no mundo. Então, a régua regulatória nos põe, realmente, num país de primeiro mundo. Sou totalmente a favor da Anvisa, defendo a Anvisa e continuarei defendendo a Anvisa. Qualidade é primordial em todos os remédios que produzimos no Brasil. Estamos e temos de estar em nível de primeiro mundo. Agora, pandemia é pandemia. A pandemia não espera, mata e morre gente.
Você acredita que a Anvisa precisa ser mais flexível?
Somos produtores de anestésicos para entubação e temos trabalhado 24 horas, inclusive sábados e domingos, para a produção desses produtos. A esterilidade de qualquer produto leva 14 dias. Até o décimo terceiro dia pode aparecer alguma coisinha lá dentro e o produto ser reprovado. A possibilidade é mínima. A Anvisa fez uma resolução permitindo aos produtos do chamado kit entubação de a esterilidade ser liberada em sete dias. Com isso, deu sete dias de liberação antecipada. Ganhou tempo. Será que não merece uma atenção, uma flexibilização, na Sputnik? Não é porque o Fernando é interessado, não. É porque as pessoas estão morrendo, pô! Interessa questionar os russos se na fase dois fizeram teste só com ratinho branco e não com o amarelo? O que importa a cor do gato? O que importa é que o gato come o rato. Não tem um caso de problema relatado com a Sputnik em nenhum lugar do mundo.
“O que importa a cor do gato? O que importa é que o gato come o rato. Não tem um caso de problema relatado com a Sputnik em nenhum lugar do mundo”
Mas vocês mandaram toda a documentação necessária para a Anvisa, sem faltar nada?
Já tem 18 mil páginas do nosso processo na Anvisa. São feitas reuniões dos nossos técnicos, dos técnicos de Moscou com a Anvisa semanalmente discutindo o processo. É um rigor muito grande, aliás tem de ser. Não sei se houve esse rigor com as vacinas que estão aí, mas não importa, comigo está sendo e temos de resolver. Agora, não vamos nos apegar em vírgula e ponto. Não faz sentido em um momento como esse.
Mudando de assunto, muitas empresas da área de saúde estão abrindo capital na bolsa. Você considera fazer IPO da União Química?
Num momento oportuno, isso pode acontecer. As expectativas nossas são de operações muito grandes que agregam valor à companhia, sem precisar ainda ir ao mercado. Mas estamos num nível de profissionalização que nos permitiria ir ao mercado. E estamos crescendo em todas as divisões de negócios, acima de dois dígitos.