Em meio à explosiva queda de braço entre a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) e as distribuidoras de gás liquefeito de petróleo (GLP), por causa de mudanças nas regras do setor, como o fracionamento de envase e o fim da exclusividade dos botijões, a Petrobras, que detém o monopólio da produção de GLP no Brasil e da venda para as distribuidoras, anunciou que pretende retornar ao varejo do gás de cozinha.

Fontes do setor produtivo e do mercado financeiro ouvidos pelo NeoFeed enxergam a medida como um potencial conflito de interesses, já que a Petrobras passaria a ter controle de toda a cadeia do segmento e, com isso, influenciar diretamente o preço final do produto.

Em 2020, a Petrobras vendeu por R$ 4 bilhões a Liquigás para a Copagaz que, a partir da fusão, virou a Copa Energia, hoje na liderança do mercado de GLP no País, com 23,8% de participação. Na segunda posição está a Ultragaz (com 22,5% de participação), seguida por Nacional Gás (21,5%) e Supergasbras (21%).

“É muito estranha essa decisão da Petrobras. Não faz sentido voltar a ter o velho modelo do ‘poço ao posto’, que já não existe em lugar nenhum do mundo. Para o acionista, isso não tem nenhuma lógica. Está beirando ao populismo, só que usando o dinheiro do investidor”, diz uma fonte a par da movimentação da petrolífera. “Pode haver um abuso de poder econômico.”

Nesse sentido, há também riscos para acionistas, já que, para voltar para este setor, a empresa terá que destinar investimentos acima de R$ 10 bilhões, caso decida adquirir alguma distribuidora já estabelecida no mercado, sem a certeza desse retorno a médio prazo do Capex alocado.

É justamente neste ponto que está, segundo o próprio setor, a possível contradição da empresa controlada pelo governo federal, apontada por especialistas.

Enquanto a presidente da Petrobras, Magda Chambriard, diz que a decisão tem a ver com a margem de 188% alcançada pelas distribuidoras entre 2019 e 2023 (o que os empresários negam), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem dito que é necessário reduzir o preço do botijão para o consumidor final, o que fatalmente resultaria em queda de margem.

“Isso é muito incoerente. A presidente alega que vai entrar no negócio porque tem muita margem e é atrativo. E aí ela diz que precisa entrar no setor justamente para reduzir essa margem e o preço do botijão cair. Não conheço ninguém que compre um negócio para baixar a margem deste setor”, diz um executivo que atua no segmento.

O mercado não comprou a versão da presidente da companhia e imediatamente precificou os potenciais riscos aos investidores com essa possível transação. Desde que o fato relevante foi divulgado, na noite de 7 de agosto, a Petrobras já perdeu mais de R$ 35 bilhões em valor de mercado, segundo levantamento feito pela consultoria Elos Ayta.

No período, as ações ordinárias PETR3, com direito a voto, registraram desvalorização de 8,45%, e os papéis preferenciais PETR4 tiveram queda de 7,25%. Em 7 de agosto, a companhia tinha um market cap de R$ 442,2 bilhões. Oito dias depois, caiu para R$ 406,9 bilhões.

“É lógico que as ações iriam cair, porque há risco de a empresa perder receita com isso. A Petrobras tem a síndrome do retrovisor, olhando para trás. É um grande retrocesso. O grande business de uma petroleira não é downstream, e sim upstream, que é explorar o pré-sal, em breve a Margem Equatorial”, diz o economista Adriano Pires, fundador do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) e ex-superintendente de abastecimento da ANP.

Ao NeoFeed, a Petrobras confirmou a aprovação do Conselho de Administração para atuação no segmento de distribuição de GLP no País. “Esta decisão permite à Petrobras avaliar oportunidades nesta etapa da cadeia de comercialização, que possam contribuir para a geração de valor e para os resultados da companhia”, informa a empresa, em nota.

O anúncio da Petrobras vem na esteira dos preparativos finais do Ministério de Minas e Energia para o lançamento do programa social Gás para Todos, que deve ocorrer ainda neste mês. A medida prevê o pagamento de subsídio na compra do botijão para 16,6 milhões de famílias até 2027. Isso vai significar investimentos da ordem de pelo menos R$ 1,5 bilhão pelas empresas do setor, com a maior parte destinada à compra de novos botijões.

“Com a Petrobras no mercado de distribuição, ela vai fazer esses investimentos mesmo com o risco de a ANP mudar todas as regras e permitir que alguém pegue seu botijão para engarrafar e vender para seus clientes?”, indaga Pires. “E na hora que ela investir no botijão, vai deixar de aplicar em setores onde tem uma rentabilidade maior.”

Leilão da discórdia

Outro ponto relevante que faz o setor ter dúvidas sobre a isonomia da Petrobras em seu possível retorno como distribuidora de GLP gira em torno da decisão da estatal, iniciada em novembro de 2024, de realizar leilão mensal de venda de GLP no mercado.

O argumento era de que estaria à venda somente o produto excedente, sob a justificativa de que garantiria uma distribuição mais equilibrada, principalmente para polos deficitários, onde haveria falta do produto. Mas o que se viu, na prática, foi um aumento na ponta final do preço do botijão, provocado pelo ágio aplicado pela companhia sobre essa venda extra.

Para Sérgio Bandeira de Mello, presidente do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás), a Petrobras, ao contrário do objetivo inicial, acabou gerando essa escassez, em um movimento calculado para, de certa forma, transferir a responsabilidade sobre esse custo extra do botijão.

“A maior crítica que a gente faz ao leilão é que não deveria ser criada uma redução da oferta às distribuidoras e, com isso, leiloar justamente esse volume que falta para completar sua base de vendas. E é justamente isso que vem acontecendo”, diz Bandeira de Mello ao NeoFeed.

A constatação está na própria quantidade que a companhia tem disponibilizado para esses certames. No primeiro leilão, em novembro de 2024, foram disponibilizadas 10 mil toneladas de GLP, o equivalente a 2% do mercado. No último, realizado no fim de julho, foram leiloadas 80 mil toneladas, o que hoje corresponde a 13% da demanda mensal do gás de cozinha pelas distribuidoras (de cerca de 610 mil toneladas de GLP). O próximo deverá ser entre os dias 26 e 29 de agosto.

Na prática, é como se, para uma distribuidora, em vez de garantir 100% da quantidade de GLP que ela indica para sua base de venda, a Petrobras repassasse 60% e forçasse essa empresa a comprar os demais 40% por meio do leilão, pagando mais caro, o que ocasiona o repasse ao valor do produto.

O resultado dessa ação foi o aumento de 6% no preço final da Petrobras cobrado das distribuidoras durante os nove leilões realizados até aqui. Em alguns estados, o aumento é muito maior. Em São Paulo, por exemplo, essa prática da estatal fez com que o preço final do GLP ficasse 19% mais caro. Em Pernambuco, a alta foi de 30%.

“É possível colocar em suspeição quando uma empresa, que produz 90% do GLP no Brasil e vende para as distribuidoras, tem um poder de mercado muito grande. E na época em que era dona da Liquigás, a Petrobras não fazia esses leilões”, afirma a fonte do setor ouvida pelo NeoFeed.

“O problema, nesse caso, não é ser um agente de mercado, como ela já foi. O problema é entender as razões da empresa em querer entrar no mercado do combustível que é mais ligado ao varejo e com pouca margem. Me parece mais um jogo de narrativa para dizer que está cuidando do preço do botijão”, complementa.

A Petrobras diz que aplica quantidades limitadas nos leilões, sem explicar o aumento de volume entre o primeiro e o último pregão. “A quantidade ofertada pela Petrobras nesta modalidade se encaixa dentro da demanda crescente das distribuidoras para destinação aos usos industrial e comercial, e que o leilão é uma forma de complementar a oferta de forma competitiva, transparente e isonômica.”