O ano era 2011. Os carros elétricos ainda estavam longe de ganhar tração, mas a Tesla e seu CEO – e principal investidor -, Elon Musk, já despontavam como os nomes que liderariam, com sobras, o hype em torno da categoria.

O empresário sul-africano parecia bastante seguro sobre essa posição quando soltou uma sonora gargalhada – com uma boa dose de desdém - em entrevista à Bloomberg TV. O motivo? A repórter acabara de lhe perguntar se ele enxergava a chinesa BYD como uma concorrente.

“Você já viu o carro deles?”, questionou Musk, enquanto seguia rindo. “Eu não acho particularmente atraente. A tecnologia não é muito forte. E a BYD, como empresa, tem problemas graves em seu próprio país.”

Catorze anos depois, Musk ostenta o título de homem mais rico do mundo, com uma fortuna estimada em US$ 465 bilhões. Mas, à parte desse patrimônio, o bilionário já não tem tantos motivos para sorrir quando o tema em pauta é o mercado de carros elétricos.

A responsável por esse choque de realidade é justamente a BYD, que, neste ano, ultrapassou a Tesla e se tornou a maior fabricante global do segmento. E o grande responsável por essa façanha é Wang Chuanfu, fundador da empresa, também conhecido, curiosamente, como o “Elon Musk chinês”.

Maior mercado da BYD fora da China, o Brasil é o próximo destino de Wang. Ele estará em Camaçari (BA) na quinta-feira, 9 de outubro, quando o grupo vai inaugurar oficialmente sua fábrica instalada no local, fruto de um aporte de R$ 3 bilhões. E, conforme apurou o NeoFeed, o empresário trará outra novidade na bagagem.

Na oportunidade, Wang vai anunciar um plano ambicioso para dobrar a capacidade de produção anual da planta, de 300 mil carros para 600 mil unidades. Os detalhes ainda são guardados a sete chaves, mas a perspectiva é de que, com esse novo salto, o investimento total na unidade ultrapasse os R$ 6 bilhões.

Em operação desde julho, ainda em fase de testes, a fábrica será a maior unidade da BYD fora da Ásia e foi anunciada com a meta de produzir, em um primeiro momento, ao menos 50 mil veículos por ano. Esse volume seria elevado a 150 mil em 2026 e, gradativamente, a 300 mil veículos até 2030.

Agora, com o novo plano, a projeção é dobrar essa capacidade no mesmo intervalo. Ou até antes desse prazo. Por trás dessa revisão, para cima, desse apetite está a meta da empresa de estar entre as três maiores montadoras no País, até 2028, e de alcançar o topo do setor até 2030.

Dados mais recentes da Fenabrave mostram o caminho a ser percorrido pela BYD na perseguição dessas metas. No acumulado de janeiro a setembro deste ano, a empresa vendeu 76.342 unidades no Brasil, o que lhe garantiu um market share de 5,41% e a sétima posição no segmento de automóveis.

Levando-se em conta automóveis comerciais + leves, a montadora registrou a venda de 77.198 unidades, o equivalente a uma participação de mercado de 4,27% e à oitava posição no ranking.

Desafios na largada

Muito antes de guiar a BYD até esses patamares e metas expressivas - e ao lugar mais alto do pódio da categoria, Wang percorreu, porém, um roteiro bastante acidentado, ao enfrentar, já na largada, uma série de barreiras e dificuldades.

Sexto dos sete filhos de um casal de agricultores, ele nasceu em 8 de abril de 1966, em uma pequena vila na província de Anhui, uma das mais pobres da China. A família já vivia em condições precárias e viu a situação se agravar com os desastres naturais que afetaram as safras naquele mesmo ano.

O que já não era fácil ganhou contornos ainda mais graves quando Wang chegou à adolescência. Aos 13 anos, ele perdeu o pai. Dois anos depois, sua mãe também faleceu. E quem assumiu a responsabilidade de sustentar o clã foi o irmão mais velho, de apenas 18 anos e que acabara de se casar.

Foi justamente o primogênito e sua esposa que fizeram Wang desistir da ideia de abandonar os estudos para ajudar no sustento da família. O casal depositava muitas esperanças no menino, que, além de não decepcioná-los, foi ainda mais longe.

Anos mais tarde, ele ingressou na Central South University of Technology. Suas notas e seu desempenho lhe garantiram bolsas de estudo e a formação em Química e Física Metalúrgica. E, posteriormente, uma vaga como professor na instituição.

O percurso na academia teve sequência com um mestrado no Bejing Nonferrous Metals Research Institute. Sua tese abordava aquelas que seriam algumas das bases para a indústria de baterias. E abriram caminho para que ele fosse convidado a participar das pesquisas do instituto na área.

Virada de chave

A virada de chave para uma visão mais prática nesse campo veio em 1993, quando Wang ingressou em uma empresa de baterias criada pelo instituto. Um ano depois, ele pediu demissão, decidido a criar seu próprio negócio e embarcar na onda de fabricar baterias elétricas para concorrer com rivais asiáticos.

O passaporte para esse novo desafio veio com um empréstimo de US$ 300 mil e a companhia de seu primo, Lu Xiangyang. No fim de 1994, a dupla fundou a BYD, sigla para Build Your Dreams (construa seus sonhos). Ou, em uma brincadeira que corre nos bastidores - Bring Your Dollars (traga seus dólares).

Do sonho à realidade, a empresa nasceu como uma fabricante de baterias recarregáveis para câmeras digitais e celulares. E, pouco tempo depois, tornou-se maior fabricante chinesa nesse espaço, conquistando clientes como Motorola, Nokia e Samsung.

O grande salto, porém, veio em 2002, quando a BYD abriu capital em Hong Kong. Com o caixa reforçado, a empresa estendeu seus tentáculos à fabricação de carros em 2003, o mesmo ano de fundação da Tesla.

A aposta inicial residia em veículos inspirados – reconhecidamente - em modelos de rivais, mas com preços mais acessíveis. O ponto de partida foi a compra de uma montadora estatal e a visão de que ali havia um atalho para combinar suas baterias e explorar o potencial de um mercado ainda nascente.

Para viabilizar essa proposta, Wang replicou o modelo adotado na fabricação de baterias: sem grandes investimentos em automação e baseado na contratação de milhares de trabalhadores, com contratos de curto prazo e alta rotatividade, para evitar aumentos salariais.

Ao mesmo tempo, a empresa investiu em um processo extremamente verticalizado, que lhe dava o controle de todas as etapas de fabricação- especialmente as mais caras. E que foi essencial, por exemplo, na pandemia, quando as cadeias de produção de diversas indústrias foram bastante afetadas.

Nos anos seguintes, a empresa direcionou seus esforços para a eletrificação e contou com uma carga adicional – e controversa, na visão de rivais - para avançar nessa nova pista: os incentivos do governo de Xi Jinping, o presidente chinês, bastante interessado em colocar o país na dianteira da categoria.

Essa dobradinha começou a se traduzir em protagonismo cinco anos depois, quando a BYD chamou atenção além das fronteiras da Grande Muralha e ganhou a chancela de dois nomes de peso no mercado global de investimentos: Warren Buffett e sua gestora, a Berkshire Hathaway.

Conhecido por sua aversão aos investimentos em empresas de tecnologia, o “Oráculo de Omaha”, por meio da gestora, desembolsou US$ 232 milhões para adquirir uma fatia de 10% da fabricante em 2008, ano que marcou a chegada dos primeiros modelos híbridos da marca às concessionárias chinesas.

O investimento da Berkshire Hathaway foi acompanhado de declarações de Charles Munger, o braço direito de Buffett, falecido em 2023, que deixavam bem claro o quanto a mão de Wang foi fundamental para que a gestora assinasse esse cheque.

“Esse cara é uma combinação de Thomas Edison e Jack Welch – algo como Edison na solução de problemas técnicos e algo como Welch em fazer o que precisa ser feito. Nunca vi nada parecido”, afirmou Munger, na época, em entrevista à revista Fortune.

Uma prova dessa personalidade singular veio justamente em uma das visitas dos investidores às operações da BYD. Segundo o The Wall Street Journal, na oportunidade, Wang tomou um gole de fluido de bateria para provar o quão limpos estavam seus produtos.

Pé no acelerador

O fato é que, mais uma vez, Wang não decepcionou. Com Buffet em seu captable e após ganhar escala em seu mercado doméstico, a BYD acelerou seus esforços de internacionalização. Especialmente a partir de 2020, quando esse trajeto se tornou sua prioridade, em mercados como Europa, Austrália e Brasil.

Quem embarcou nesse roteiro foi Alexandre Baldy, um ex-deputado federal por Goiás, ex-ministro das Cidades no governo de Michel Temer e ex-secretário dos Transportes Metropolitanos de São Paulo na gestão de João Dória.

Vice-presidente sênior da BYD Brasil e head de marketing e comercial da BYD Auto, ele assumiu, na prática, o comando da operação brasileira no fim de 2022, pouco tempo depois de conhecer Wang. E guarda algumas passagens com o empresário, que, em sua visão, tem uma inteligência fora do normal.

“Numa certa ocasião, em 2023, nós visitamos várias concessionárias no Brasil. E ele entrava nos carros dos rivais, olhava para mim e perguntava: Mas é com isso que eu tenho que concorrer?”, conta Baldy. O tom era depreciativo. O que não significa que Wang achava que teria pista livre para crescer no Brasil.

“Ao contrário, ele tinha a consciência de que seria extremamente desafiador porque eram produtos de baixa qualidade, focados essencialmente no preço”, diz o executivo. “Ele tem essa perspicácia de que está construindo uma empresa global, mas que precisa concorrer localmente.”

Baldy se reporta diretamente a Stella Li, vice-presidente da BYD. Mas ressalta que Wang é bastante assíduo – e extremamente ativo – nas reuniões semanais que avaliam a evolução e os desafios da operação brasileira, que classifica como a de maior relevância para o grupo fora da China.

“Ele adora visitar os pontos de venda e entender o hábito do consumidor”, afirma Baldy. “É a base para que ele consiga levar para dentro de casa e desenvolver produtos que tenham convergência com o país no qual ele está introduzindo a marca ou buscando ampliar a participação da BYD.”

Nessa direção, a BYD também expandiu suas fronteiras para segmentos além dos veículos e baterias. Entre eles, semicondutores, painéis solares, ônibus elétricos e sistemas de transporte ferroviário. A empresa está envolvida, por exemplo, no projeto da futura linha 17-Ouro do metrô de São Paulo.

O carro-chefe, porém, segue sendo os veículos elétricos. E o status nesse espaço não se resume mais ao apelo dos preços mais acessíveis e à produção em massa. Com forte investimento em P&D, a empresa avançou na qualidade e no design de seus modelos.

Nessa toada, enquanto a Tesla sofreu impactos – seja pela desaceleração nas vendas na China e em mercados como a Europa, ou pelas distrações de Musk com a política -, a BYD ganhou terreno. Em maio, por exemplo, a montadora superou, pela primeira vez, a rival em vendas no Velho Continente.

Nos dados mais recentes, o grupo fechou o primeiro semestre de 2025 com uma receita total de 371,3 bilhões de yuans (cerca de US$ 51,7 bilhões), alta anual de 23%. O lucro líquido cresceu 13,7%, para 15,5 bilhões de yuans (cerca de US$ 2,2 bilhões). Já as vendas subiram 33%, para 2,15 milhões de veículos.

Esse desempenho veio mesmo com dificuldades na China, devido a uma guerra de preços, e diante da crescente pressão de fabricantes e órgãos reguladores em mercados como a própria Europa, dispostos a colocar freios no avanço acelerado da companhia - e de outras marcas chinesas.

Sua conta bancária, no entanto, está cada vez mais “pesada”. Com a BYD avaliada em 1,04 trilhão de dólares de Hong Kong (US$ 134,5 bilhões), a fortuna do empresário é estimada em US$ 25,8 bilhões, o que lhe confere o 91º lugar no ranking Bloomberg Billionaire Index.

A posição, claro, está bem distante da liderança de Elon Musk. Mas é certo que, longe das risadas de catorze anos atrás, o dono da Tesla já não vê mais a rival – e seu fundador - pelo retrovisor. Nem com desdém. Baldy descarta, porém, qualquer “troco” por parte de Wang.

“Ele admira e tem uma relação com o Elon Musk, pois entende que ele fez um grande trabalho com a Tesla”, afirma. “E os chineses não têm esse sentimento, como nós brasileiros, de revanchismo. Ao contrário. Eles são obstinados, pragmáticos, focados e perseverantes para atingir o que desejam.”