A presença do crime organizado no setor de combustíveis no Brasil vem impactando duramente o ritmo de crescimento da Ipiranga, que faz parte do grupo Ultra, e das principais companhias que atuam nesse mercado.

Embora esse problema exista há muitos anos, a deflagração das operações Carbono Oculto, em agosto deste ano, e mais recentemente a Poço de Lobato, ambas da Polícia Federal (PF), trouxeram à tona o megaesquema de sonegação e fraude tributária no segmento, liderado pela Refinaria de Manguinhos (Refit). O volume de impostos sonegados ultrapassa R$ 24 bilhões.

Com isso, o reflexo já foi percebido na receita de quem opera de forma regular. Controlada pelo grupo Ultra e dona de seis mil postos no País, a rede Ipiranga registrou aumento de 8% no volume de vendas de combustíveis no terceiro trimestre, em comparação ao trimestre anterior, a partir das ações da PF - a maior alta foi no óleo diesel.

Por outro lado, Leonardo Linden, presidente da Ipiranga, diz que a companhia poderia ter crescido de forma muito mais rápida caso existisse uma condição de igualdade de competição, sem fraudes e sem sonegação. Somente na abertura de postos de combustíveis, o ritmo anual poderia ser o dobro, em um cenário de mercado mais isonômico e justo, do ponto de vista tributário.

“Em média, abrimos de 300 a 350 postos anualmente. Mas poderíamos abrir 700 postos por ano e criar outras frentes de negócio, se não fossem essas irregularidades e a presença do crime organizado no setor”, diz Linden, em entrevista ao NeoFeed.

Para ele, a situação no setor, a partir dessa competição desleal, estava se tornando insustentável. “Ao mesmo tempo em que investimos em segurança e infraestrutura, temos que competir com quem não dá a mínima para isso e sonega impostos. Competíamos nesse ambiente, mas isso não é justo.”

De qualquer forma, a companhia já percebeu, nas últimas semanas, o aumento na demanda por donos de postos "bandeira branca", sem marca, que planejam mudar para Ipiranga, e da procura por fornecimento direto de combustíveis no setor industrial.

Olhando para o futuro, em um cenário de consolidação dessas mudanças para um ambiente regular de mercado, a avenida de crescimento da Ipiranga está na rota para o Centro-Oeste, região em que a empresa tem participação menor (12,75%), e no Norte.

“Temos tido um olhar especial nas regiões onde o Brasil cresce e onde precisa de infraestrutura, como Norte e Centro-Oeste, que registram desenvolvimento a dígito duplo. Há, por ali, uma lógica de escoamento de safra que é muito importante”, afirma o executivo.

Linden diz que não se espantou com o volume de irregularidades apontadas pela Polícia Federal, mas, em sua visão, o que foi feito até aqui não é suficiente para barrar a presença do crime organizado no setor.

“Já estava achando que o Brasil nunca teria capacidade de atacar esse problema. É positivo, não tem surpresa, mas é necessário atacar a raiz. Precisamos aprovar o projeto de devedor contumaz, e controlar a questão da falta da mistura do biodiesel no diesel. Foi ótimo o que já aconteceu. Agora precisamos de soluções definitivas”, completa o presidente da Ipiranga.

Acompanhe, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Como tem sido o ano de 2025 para a Ipiranga e quais as consequências das operações da Polícia Federal contra fraudes no setor?
Tem sido um ano de volatilidade de ambiente. A Ipiranga está tendo um bom ano, gerando resultado dentro do que a gente previa. O primeiro semestre foi muito pressionado pelas irregularidades do setor, e essas operações da Polícia Federal, a partir do segundo semestre, começam a dar uma dinâmica diferente. Há reações positivas que geram consequências nos resultados. Volume reage e a companhia ganha participação de mercado. Temos a esperança de que as coisas possam evoluir a partir do momento em que haja um ambiente de negócio um pouco mais justo, do ponto de vista de competição.

O quanto essas irregularidades tributárias e a presença do crime organizado afetam o setor de combustíveis no Brasil?
Esse setor sempre teve algum nível de ilegalidade. Há a ilegalidade operacional, de adulteração de produtos, falta de respeito a contratos, situações de mistura incompatível com o que determina a lei. E tem o efeito tributário. Como o nosso setor é muito carregado por tributo, qualquer nível de sonegação gera, na ponta, uma diferença de preço muito grande. E, em um ambiente mais agressivo de ilegalidade, essas coisas se misturam.

"Só uma sonegação de ICMS apurada é mais de dez vezes a margem da Ipiranga. Isso gera uma desigualdade muito grande"

Como isso interfere no negócio, na prática?
Há distribuidoras que atuam nesta ilegalidade tendo um nível de competitividade que você não consegue ter. Só uma sonegação de ICMS apurada é mais de dez vezes a margem da Ipiranga. Isso gera uma desigualdade muito grande que faz com que as empresas sérias não consigam competir, por mais eficientes que sejam. Estamos falando de um negócio que se rentabiliza pela escala, e não na margem unitária. E, com esse nível de distorção, as empresas regulares, não só a Ipiranga, acabam perdendo espaço.

Trava qualquer tentativa de crescimento?
Por isso que, de um tempo para cá, essas empresas que operam com algum nível de ilegalidade foram as que mais avançaram. Isso impacta na capacidade de investimentos, justamente por causa dessa incerteza. Esse cenário prejudica o consumidor, o Estado e as empresas.

Essa situação estava insustentável para o mercado de combustíveis?
O ambiente estava ficando muito deteriorado. Se essa situação se prolongasse um pouco mais, se tornaria insustentável. A gente, como uma empresa de quase 90 anos [fundada em setembro de 1937], vai lutando com as armas que tem. A gente competia neste ambiente, mas isso não é justo.

Quanto a Ipiranga investe?
A Ipiranga coloca entre R$ 1,3 bilhão e R$ 1,4 bilhão em investimentos no País por ano para melhorar infraestrutura e ampliar bases de distribuição. Ao mesmo tempo em que investimos em segurança e infraestrutura, temos que competir com quem não dá a mínima para isso e sonega impostos. Mas acredito que o que gente viu nas últimas semanas deve gerar um ambiente de competição mais justo, com todo mundo jogando a regra do jogo. Essas operações revelam uma disposição, que nunca tinha visto, de atacar para valer o problema.

Por qual razão o setor de combustíveis é a porta de entrada para ilegalidades e o crime organizado no Brasil?
A carga tributária no litro do combustível é muito alta. Então, é atrativo, para quem pratica ilegalidades, operar com evasão fiscal. É um setor de escala, que fatura muito. Por ano, a Ipiranga fatura mais de R$ 130 bilhões. Mas a rentabilidade é relativamente baixa. Para os que querem girar muito dinheiro, acaba sendo atrativo. Ainda que a maior parte das empresas seja séria, este tipo de notícia que estamos vendo ganha muita repercussão e impacta a imagem do setor como um todo. É ruim isso. Além do malefício que isso gera, também causa um prejuízo de imagem.

"Um estudo da FGV fala em R$ 30 bilhões de evasão tributária por ano. Imagina o que isso representaria de novos investimentos para o País com essa arrecadação"

É possível entender como a Refit, com o volume apurado de sonegação fiscal, ainda estava em operação?
Essa resposta precisa ser dada por quem era responsável por isso. Esse é um exemplo, mas há muitos outros. Os meios se repetem. Nosso papel é fazer nossa parte, operar bem e denunciar quando encontramos problemas, por meio do Instituto Combustível Legal (ICL). É uma pergunta difícil de ser respondida. Essa empresa está operando há muito tempo. Há um estudo da FGV que fala em R$ 30 bilhões de evasão tributária por ano. Imagina o que isso representaria de novos investimentos para o País com essa arrecadação.

Ao longo desses anos, essa situação de irregularidades afetou o volume de investimentos e de crescimento da Ipiranga?
Há investimentos que a gente faz sempre acreditando em longo prazo. Isso não afeta, porque a gente continua acreditando que essas coisas se resolvem. Porque, se não resolver, aí é um problema muito maior do que isso, é um problema de País. Dependendo de como o ambiente está, podemos ser mais agressivos. Em média, abrimos de 300 a 350 anualmente. Mas poderíamos abrir 700 postos por ano e criar outras frentes de negócio, se não fossem essas irregularidades e a presença do crime organizado no setor. Poderíamos dobrar o número de postos. Eu acredito que caiba. Em outro cenário, o apetite seria maior.

O dobro de postos significaria aumento na mesma proporção no volume anual de investimentos?
Não necessariamente. Metade dos nossos investimentos é em infraestrutura e isso continuaria acontecendo. Mas naturalmente poderia haver mais espaço para aumento de postos. Pode aumentar, sim. Em 2025, foram R$ 688 milhões em expansão. Devemos encerrar o ano com cerca de 300 postos abertos.

Dessa forma, dá para prever uma quantidade maior para 2026?
Já temos sido demandados. Tudo isso que está acontecendo é recente e a precisamos ver essas investigações andando, além de criar leis para inibam que outras empresas ilegais se consolidem no mercado. Mas percebo que uma marca como a Ipiranga acaba sendo um porto seguro para o consumidor fugir desse problema. Nossos volumes reagiram bem e estamos vendo uma demanda por novos postos chegando a nós nos últimos meses, acima do prevíamos anteriormente. Há procura por compra de produtos Ipiranga e pela expansão do negócio. Enxergamos, sim, uma reação positiva no mercado.

Esse aumento na demanda vem de donos de postos que querem fazer conversões de bandeira ou novas oportunidades?
Há os dois casos. A oferta de produtos irregulares agora está menor, e isso acabando direcionando para a Ipiranga. Isso tem vindo no segmento empresarial, com transportadoras, usinas, náutico. E estamos assistindo o aumento dessa demanda pelo embandeiramento da Ipiranga, que é o revendedor que tem um posto de marca própria ou bandeira branca e quer colocar uma marca que ele confia. Se a demanda vier, estamos prontos para atender.

No terceiro trimestre, o volume de vendas de combustíveis aumentou 1%, sobre o mesmo período de 2024, e 8% sobre o segundo trimestre. É um impacto direto da Operação Carbono Oculto?
Sim, impacto direto. É claro que a gente faz muita coisa para vender mais, mas a maior parte vem da interrupção do esquema de irregularidades. Boa parte do que vínhamos fazendo era para segurar o negócio onde estava. E agora sentimos essa reação de volume. A perspectiva daqui para a frente é bem positiva.

"Criou-se a expectativa de que, resolvida a irregularidade no setor – que não está ainda –, a margem daria um pulo. Mas esse movimento será gradual"

Haverá uma continuidade nos próximos meses?
Novembro e dezembro já são meses com sazonalidade maior, mas vemos esse fator sendo refletido no negócio da Ipiranga. A empresa tem hoje market share de 15,5% no Brasil. Somos muito fortes no Rio de Janeiro e São Paulo [16,14% de participação] e o impacto tem sido maior nestes estados, onde percebemos, no primeiro momento, mais crescimento. Nossa rede em São Paulo e no Rio é de 1,8 mil postos.

Olhando para o futuro, a partir deste novo cenário do setor, a Ipiranga pretende ampliar sua presença em outros estados?
Sim. A Ipiranga quer avançar em estados onde tem uma participação menor. Temos tido um olhar especial nas regiões onde o Brasil cresce e onde precisa de infraestrutura, como Norte e Centro-Oeste, que registram desenvolvimento a dígito duplo. Há, por ali, uma lógica de escoamento de safra que é muito importante.

O lançamento recente de um novo tipo de óleo diesel, voltado para o agronegócio, tem conexão com este plano de crescimento no Centro-Oeste?
Tem sim. Mostra a relevância do agronegócio brasileiro. Nosso negócio está dividido em rede de postos e o industrial, onde entra o agro. A gente não quer só um supridor de combustível para o setor e sim um gerador de soluções. E o Ipimax Diesel S10 Agro é parte deste pacote. Pela sua formulação, ele gera uma economia na ponta. A gente opera a área de abastecimento e de aconselhamento de maquinário para muitas empresas do agro. Também fizemos parceria com a 3Tentos para instalação de uma base integrada à usina de biodiesel, no Mato Grosso.

Mesmo com o aumento na receita e no volume de combustível, a Ipiranga registrou queda no Ebitda ajustado recorrente. Qual o desafio agora para recuperar a margem?
A margem ainda vai ter uma recuperação gradual. O que importa neste momento é recuperar o tamanho do negócio que se perdeu ao longo dos últimos anos. A margem vem gradualmente, e já estamos neste processo de recuperação. Se criou a expectativa de que, resolvida a irregularidade no setor – que não está ainda –, a margem daria um pulo. Mas esse movimento será gradual, até porque o consumidor não pode pagar esta conta. E margem não é só efeito de preço. Também é reflexo de eficiência. Nossa estratégia está alinhada e as coisas estão acontecendo. A margem é consequência.

Você disse que o consumidor não pode pagar esta conta. Mas há chance de repasse nos preços de combustíveis, a partir da saída do mercado de produtos irregulares, sem impostos, que geravam valores mais baixos?
Acho que não. O consumidor deveria sentir o contrário, a partir do momento em que o Brasil vai arrecadar mais. Não vejo razão de aumentar isso na bomba. Mas aqueles revendedores que estavam comprando produtos muito baratos, certamente vão sair do mercado.

Pela sua experiência de atuação no setor, causou algum tipo de surpresa ou espanto a divulgação dessas fraudes tributárias bilionárias?
Para mim, não. Sabíamos o tamanho disso. Eu sinto isso na pele. Não me deixa perplexo. Me deixa esperançoso. Já estava achando que o Brasil nunca teria capacidade de atacar esse problema. E agora viu uma demonstração de inconformismo, de não aceitar isso. É positivo, não tem surpresa, mas é necessário atacar a raiz. Precisamos aprovar o projeto de devedor contumaz, e controlar a questão da falta da mistura do biodiesel no diesel. Precisamos ter capacidade para fiscalizar. Foi ótimo o que já aconteceu. Agora precisamos de soluções definitivas. O primeiro passo foi dado, mas isso não termina aqui.