A operação Carbono Oculto, deflagrada na quinta-feira, 28 de agosto, pela Polícia Federal e Receita Federal, não só revelou um dos maiores esquemas de lavagem de dinheiro e adulteração de combustíveis já registrados no País como mapeou toda a cadeia de fraudes do setor, da importação à revenda, capitaneada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).
Segundo as autoridades, o crime organizado utilizou empresas de fachada, usinas de cana-de-açúcar, transportadoras e postos de combustíveis para movimentar R$ 52 bilhões apenas nas fraudes envolvendo a cadeia de combustíveis, entre 2020 e 2024.
Esse valor foi identificado pela Receita Federal como resultado de operações simuladas, adulteração de combustíveis, uso de postos de fachada e sonegação tributária. Os números representam apenas a parte rastreada pelas autoridades — o impacto real pode ser ainda maior, considerando os ativos ocultos em fundos de investimento e propriedades.
No centro do esquema estava a importação irregular de nafta petroquímica, produto que deveria ser usado como insumo industrial, metanol e diesel, mas que eram desviados para a formulação clandestina de combustíveis, gerando fraudes fiscais de R$ 7,6 bilhões.
Um terminal portuário e transportadoras e postos de combustíveis operavam como braços logísticos e comerciais do esquema. Muitos estabelecimentos recebiam combustíveis já adulterados ou simulavam vendas com notas fiscais frias, facilitando a lavagem de dinheiro. Parte dos recursos era inserida no sistema financeiro por meio de maquininhas de cartão e contas em fintechs, dificultando o rastreamento.
A Receita Federal também identificou mais de mil postos envolvidos em movimentações suspeitas, muitos sem operação real, mas com alto volume de transações declaradas. Para se ter uma ideia das fraudes, cerca de 140 postos sem operação real receberam mais de R$ 2 bilhões em notas fiscais simuladas.
Para ocultar o patrimônio obtido com as fraudes, o grupo criminoso utilizava fundos de investimento fechados e empresas de fachada, inclusive no mercado financeiro. Segundo os investigadores, o esquema não apenas lesava os cofres públicos, mas também distorcia a concorrência no setor, prejudicando distribuidoras regulares e consumidores em todo o País.
As ações do Grupo Ultra, da Raízen e da Vibra subiram entre 4% e 7% ao longo do pregão, num sinal de apoio do mercado à megaoperação contra fraudes e lavagem de dinheiro no segmento de combustíveis.
Quatro entidades ligadas aos setores sucroenergéticos e de combustíveis divulgaram nota conjunta elogiando a Operação Carbono Oculto. São elas o Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom), a Bioenergia Brasil - entidade do setor bioenergético que tem representação em todos os estados produtores do País –, o Instituto Combustível Legal e a União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Única), que representa produtores do Centro-Sul do País.
“O combate a práticas ilícitas é fundamental para defender os consumidores, garantir a arrecadação de tributos, fortalecer a confiança de investidores e assegurar um ambiente de negócios transparente que valorize empresas idôneas e inovadoras”, diz a nota.
Impunidade
Para Roberto Livianu, procurador de Justiça no Ministério Público do Estado de São Paulo e fundador do Instituto Não Aceito Corrupção, a Operação Carbono Oculto mostrou o grau de sofisticação do crime organizado, o que exige do Estado brasileiro mais ousadia na elaboração de investigações estratégicas, com investimento em tecnologia para sufocar economicamente os grupos criminosos.
“O dinheiro do crime passa pela lavagem, ele sempre vai precisar de empresas de fachada, daí a necessidade de uma articulação entre o Ministério da Justiça e as secretarias estaduais de Segurança para fazer em investigações com base em inteligência”, diz Livianu ao NeoFeed.
O alcance da Operação Carbono Oculto reforçou a necessidade de um aprofundamento das investigações de fraudes nos postos de combustíveis – amplamente conhecidos como porta de entrada de dinheiro do crime organizado.
Pelo menos quatro operações de grande porte do tipo, além de estudos independentes realizados nos últimos anos, já haviam detectado essa penetração do crime organizado no segmento de combustíveis e os prejuízos causados pelas fraudes às empresas do setor que operam de forma regular.
O Instituto Combustível Legal (ICL) já havia estimado que pelo menos R$ 30 bilhões são desviados por ano do setor, com a sonegação de impostos e fraudes operacionais, como a adulteração nas bombas de combustíveis. Parte desse prejuízo ocorre pela atuação do crime organizado.
Um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em fevereiro, por sua vez, revelou que o crime organizado lucra mais com o comércio de combustíveis do que com o tráfico de cocaína.
O estudo “Follow the products” usa dados do World Drug Report de 2024, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, e traz cifras estimadas das operações de facções como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC).
Entre 2022 e 2023, o crime organizado lucrou R$ 61,5 bilhões com atividades ilícitas com combustíveis e lubrificantes. O montante representa 41,8% da receita do crime organizado, de R$ 146,8 bilhões – valor muito maior que os supostos R$ 15 bilhões com lucros do tráfico de cocaína, receita considerada conservadora por ser de difícil aferição.
Segundo o relatório, o mercado de combustíveis tem 13 bilhões de litros comercializados ilegalmente todos os anos, com perdas fiscais de R$ 23 bilhões, por meio de adulteração, roubo de cargas e de dutos, bombas fraudadas, postos piratas, venda sem emissão de nota fiscal, fraudes em operações interestaduais, empresas de fachada e desvios em importações e exportações.
A Operação Rei do Crime, deflagrada pela Polícia Federal em 2020, por exemplo, identificou que o Primeiro Comando da Capital (PCC) usava uma rede de postos e distribuidoras para movimentar R$ 32 bilhões em quatro anos – número abaixo do valor de R$ 52 bilhões nos últimos quatro anos divulgado nesta quinta-feira pela Operação Carbono, indicando o crescimento e sofisticação das fraudes.
Por outro lado, dois relatórios preparados pelo Bradesco BBI no último ano dimensionaram os prejuízos das empresas do setor de combustíveis com essas fraudes.
O primeiro, divulgado em setembro do ano passado, indicou que o conjunto das três maiores distribuidoras do país (Vibra, Raízen e Ultrapar/Ipiranga) poderia aumentar o seu valor de mercado de 11% a 17% se os principais crimes de ordem fiscal no mercado nacional de combustíveis fossem solucionados pelas autoridades.
A estimativa era que, em um cenário sem os cinco principais crimes e irregularidades listadas, os lucros poderiam ser de 10% a 15% maiores, e o Ebitda (lucro antes da incidência de juros, depreciação, impostos e amortização) cresceria, em média, mais de meio bilhão de reais (Vibra, R$ 544 milhões; Ipiranga, R$ 472 milhões; e Raízen, R$ 500 milhões).
Já o rombo fiscal no mercado de combustíveis foi estimado em R$ 26 bilhões em termos nominais, segundo números atualizados em 2021. Desse montante, R$ 14 bilhões se referiam à arrecadação de impostos, e R$ 15,5 bilhões, oriundos de perdas operacionais (volume físico).
Em julho passado, em novo relatório, o Bradesco BBI mostrou como Vibra, Raízen e Ultrapar (Ipiranga) perderam 3% de participação de mercado entre janeiro de 2024 e abril de 2025 por causa do avanço do crime organizado no setor.
A perda está diretamente associada à expansão de distribuidoras informais, muitas delas ligadas a esquemas de fraude fiscal e lavagem de dinheiro.
“A perda de participação das grandes distribuidoras coincide com o avanço de empresas que operam fora dos padrões regulatórios, especialmente em estados com fiscalização mais frágil”, diz o relatório, citando os estados do Pará, Mato Grosso e Rio de Janeiro com crescimento expressivo de distribuidoras informais, com aumento de até 8,4 pontos percentuais na comercialização irregular.