Nos últimos anos, o mercado de capitais dos Estados Unidos passou por um profundo abalo com a chegada de plataformas de negociação de ações voltadas para pequenos investidores. 

Com interface simples e sem cobrar comissões pelas operações, elas possibilitaram que milhões de pessoas comuns pudessem operar no mercado. A mais conhecida delas é a Robinhood, que atualmente conta com mais de 13 milhões de usuários e US$ 71 bilhões em ativos sob custódia. Mas, agora, quem está sob risco de passar por um forte abalo são essas empresas.

Com o objetivo declarado de melhorar a transparência e os preços para pequenos investidores, a SEC, o xerife do mercado de capitais dos Estados Unidos, está propondo uma revisão das regras de negociação de ações, naquela que está sendo considerada a reforma mais profunda em duas décadas. 

Na quarta-feira, dia 14 de dezembro, o órgão regulador divulgou um documento de 1,5 mil páginas com propostas para consulta pública. A principal mudança, e que está gerando bastante controvérsia, é na maneira como as ordens de compra e venda são operacionalizadas pelas plataformas virtuais. 

A proposta da SEC prevê a criação de um mecanismo de leilão, para forçar as corretoras que recebem as chamadas ordens a mercado – em que o investidor diz qual ação e qual quantidade quer comprar ou vender pelo preço que está disponível no mercado – a oferecê-las a um grupo maior de tradings, que competirão para executá-las. A regra valeria para operações abaixo de US$ 200 mil e para investidores que realizam menos de 40 operações por dia. 

Isso representa uma mudança significativa para as plataformas voltadas para o investidor de varejo. No modelo atual, quando alguém emite uma ordem de compra ou venda de ações no aplicativo, essas plataformas, na maioria das vezes, não enviam a ordem diretamente para as bolsas de valores. Elas direcionam mais de 90% das operações para os chamados formadores de mercado, ou atacadistas, como Citadel Securities e a Virtu Financial.

Muitos formadores de mercado pagam as corretoras para receberem as ordens de execução pelos investidores, ganhando centavos em cada transação. Esta é uma das fontes de receita da Robinhood, que no terceiro trimestre registrou uma receita US$ 361 milhões, queda de 1% em relação ao mesmo período de 2021. 

Essa relação tem preocupado a SEC. A autarquia aponta para a possibilidade de conflito de interesse para as corretoras, que eventualmente podem não ir atrás da melhor cotação para o seu cliente. 

Segundo ela, mesmo que os formadores de mercado muitas vezes ofereçam cotações competitivas para os investidores, o fato de as operações serem executadas internamente, sem prover oportunidade para outro participante de mercado apresentar uma oferta melhor, impede aos investidores menores terem acesso a ofertas que podem ser melhores. 

A autarquia calcula que o valor anual do “déficit competitivo” do modelo atual é na casa dos US$ 1,5 bilhão. 

“Hoje em dia, os mercados não são tão justos e competitivos quanto poderiam ser para investidores individuais, os investidores do varejo”, disse o presidente da SEC, Gary Gensler, em nota. “Em parte, isso acontece porque não há igualdade de condições entre as diferentes partes do mercado.”

Diante do impacto que a proposta pode ter, as empresas já demonstram que vão resistir. Ao jornal The Wall Street Journal (WSJ), o vice-diretor jurídico da Robinhood, Lucas Moskowitz, disse que algumas das propostas da SEC podem resultar “na retomada de barreiras discriminatórias de entrada e prejudicar milhões de investidores de varejo”. 

Ainda segundo ele, a SEC “não deveria estar brincando de política na habilidade dos americanos de melhorarem suas vidas financeiras”.

Uma porta-voz da Citadel disse ao WSJ que “qualquer proposta de mudança deve fornecer soluções demonstráveis para problemas reais, procurando evitar consequências não intencionais que podem prejudicar os investidores americanos”. 

Este processo de encaminhamento de operações por corretoras a formadores de mercado é conhecido como “pagamento pelo fluxo de pedidos” e está na mira dos reguladores desde o fenômeno das memes stocks, a mais conhecida delas sendo a GameStop, que explodiu no começo de 2021. 

Na ocasião, muitos desses pequenos investidores utilizaram corretoras virtuais como a Robinhood para apostar na GameStop e outras ações de empresas com fundamentos considerados fracos. O episódio levou a SEC a revisar as regras sobre o funcionamento do mercado de capitais. 

Para Carlos Lobo, sócio das áreas de M&A e Mercado de Capitais da banca de advogados americana Hughes, Hubbard & Reed, as propostas da SEC, que ainda estão em fase de consulta pública, atualizam as regras para incorporar esse novo modelo de negócios das plataformas e transformar a relação delas com seus clientes mais transparente. 

“Antes dos aplicativos, a relação que existia entre investidores e corretor era uma relação remunerada, com o corretor buscando executar a ordem da melhor forma possível”, afirma. “Com os aplicativos, não existe um compromisso claro da corretora de conseguir a melhor ordem.”