O executivo Sergio Rial ficou apenas nove dias no comando da Lojas Americanas. Sua saída, juntamente com o diretor financeiro André Covre, aconteceu após a descoberta de uma inconsistência estimada em R$ 20 bilhões nos balanços da rede varejista.

Na manhã de quinta-feira, 12 de janeiro, Rial participou de uma concorrida teleconferência na sede do Banco BTG, em São Paulo, para explicar os motivos que o levaram a expor esse grave problema na empresa.

“’Como você se deu conta tão rapidamente desse problema?’, pode ser uma das perguntas. A partir de várias coisas, mas na dimensão mais conceitual e do ponto de vista da liderança, identifiquei sinais de que o nível de transparência, de querer falar de problemas e desafios, não era tão fluido como deveria”, disse ele no início da sua apresentação”, disse Rial.

O grande problema que saltou aos olhos de Rial e Covre foi a dívida da companhia com os fornecedores. Em nove dias mergulhado nos balanços da Americanas, eles chegaram à estimativa (que não está chancelada por qualquer auditoria) de que, ao longo de vários anos, havia inconsistência nos lançamentos.

“Passei por uma escolha de Sofia, falo ou não, espero a auditoria ou não? Pela cultura dos acionistas, que é também a minha, prefiro errar, ao ser precioso, do que aguardar”, disse ele.

Rial e Covre poderiam esperar a conclusão da pwc, a auditoria que cuida das informações contábeis da Americanas e do comitê independente que foi formado por Octavio Yazbek, Pedro Melo e Vanessa Lopes. Mas a escolha de expor o problema, na visão dele, é uma oportunidade de repensar as informações de todas as redes varejistas.

“Os R$ 20 bilhões não estão fora do balanço -- com o meu disclaimer de apenas nove dias e sujeito a validação da auditoria e do comitê independente. Eles estão ao longo dos anos, dentro dos lançamentos contábeis da empresa”, afirma Rial.

O que isso exatamente significa? Na avaliação de Rial, a engenharia financeira em torno da cadeia de fornecedores das redes varejistas gera possibilidades de interpretação, por mais que as auditorias tentem enquadrar. “Há uma liberdade de interpretação que permite que se coloque como dívida bancária ou de fornecedor”, diz ele.

Quando a varejista financia diretamente com o fornecedor, e o balanço da empresa serve de garantia, esse é um risco fornecedor. Mas se um banco entra nessa triangulação, fazendo o pagamento direto para o fornecedor, é uma dívida bancária. A instituição financeira antecipa o valor a receber com o fornecedor, com deságio, e a diferença será paga pela Americanas no prazo final. Até aí todo casamento de dados está correto.

O problema é que a Americanas arca com o custo desse deságio, que não aparece na conta clássica do fornecedor. “Se é dívida, onde está o custo financeiro dessa conta?”, questiona Rial. “Quando volto e olho para a conta de resultado e faço a reversão financeira com o estoque de dívida bruta, não coincide. Há menos despesa financeira. E esse custo financeiro tem de estar em algum lugar.”

Rial frisou várias vezes que esse é um problema de lançamento contábil e não uma maquiagem financeira para esconder qualquer outro tipo de problema que possa existir na companhia. “Tudo, absolutamente tudo, foi pago. Repito que esses R$ 20 bilhões estimados não estão fora do balanço. Mas o patrimônio líquido da companhia não é de R$ 16 bilhões”, diz ele.

Para resolver esse problema, Rial sugere um modelo mais claro para todo o mercado varejista, simplificado, para melhorar a clareza e a transparência dos riscos da conta fornecedor e da conta banco no balanço. Tão logo ele se deparou com o material, Rial conta, que ao lado de Covre, tomou a decisão de seguir o protocolo e avisar imediatamente o board da companhia e o chairman sobre a seriedade do que estava acontecendo.

Na reunião, segundo Rial, não houve uma segunda discussão ou algum debate do que deveria ser feito. Todos ficaram com o fígado dolorido, mas ninguém questionou as impropriedades do balanço ou ajustes que deveriam ser feitos. Como revelou o NeoFeed, Carlos Alberto Sicupira, do 3G, e Eduardo Saggioro, um dos membros do Conselho de Administração, estavam na sede da Americanas na primeira semana de janeiro.

“Vai parecer estranho, peço desculpa, é transparente, mas não é tóxico. E as pessoas estão comprometidas, os resultados apareceram e os bônus pagos foram reinvestidos na ação da empresa. Isso significa que essas pessoas têm suas poupanças nas ações da Americanas”, contou Rial.

O executivo, que segundo o comunicado oficial distribuído na noite de quarta-feira, 11, deixou o posto de CEO (João Guerra, que acumula 31 anos de casa e não tem ligação com a área financeira, assumiu o cargo), mas vai continuar assessorando a empresa nesse processo, informou que o endividamento da Americanas não será alterado e as obrigações mais importantes de pagamento da dívida acontecem a partir de 2025.

Ele frisou que, se nenhuma instituição financeira antecipar a dívida, a Americanas tem fluxo de caixa para seguir normalmente. “Continuaremos operando nas bases que temos, sem nenhum problema. Não tem um impacto de curto prazo no caixa, a não ser que os bancos queriam acelerar a dívida. Mas isso pode ser ajuizado”, afirma.

Questionado sobre a necessidade de uma capitalização da companhia, ele não descartou. Rial disse que, antes de qualquer definição, é preciso conhecer o real patrimônio líquido da Americanas, algo que só o comitê independente e a auditoria poderão fazer. Em seguida o mercado terá conhecimento do que é necessário.

“Nas conversas que tivemos, os acionistas de referência mostraram claramente o seu compromisso e entendem que são parte da solução, que deve ser construída com a participação deles, mas não só por eles. Me dá um cheque e seguimos a vida? Não vai acontecer”, diz Rial. “Ninguém definiu um número, mas não temos a menor dúvida que não vai ser de milhões. Mas eles entendem que a capitalização vai levar uma base ‘resetada’ a conseguir resultados consistentes em termos de rentabilidade.”

A questão que fica é como uma companhia que vem trabalhando bem, com uma fenomenal oportunidade de crescimento no varejo física e digital, que é geradora de caixa, como Rial repetiu algumas vezes na teleconferência, pode despencar rapidamente num precipício? Para o executivo, há uma combinação ruim provocada pela necessidade de crescimento no mundo digital, que tem margens apertadas, com a alta da taxa Selic para 13,75% ao ano somada a um uma série de erros de lançamentos contáveis. “O digital cresceu de forma rápida e furiosa, mas sem os suficientes controles”, diz ele.

Mas se tudo parece sob controle, por que Rial e Covre renunciaram? Ele disse que o negócio do varejo é, essencialmente, de margens apertadas. Por isso, há necessidade de um balanço patrimonial forte. Com a situação financeira abalada, ele “enviou um comunicado para rediscutir os objetivos futuros”.

A ação da Americanas não estava disponível para negociação no início do pregão de quinta-feira, 12. A suspensão foi uma medida de prudência da B3. Um leilão, a primeira janela para negociação para os investidores, seria aberta apenas às 13h. O ativo, que havia sido negociado a R$ 12 no dia anterior, já tinha ofertas de venda no book por R$ 3, uma desvalorização de 75%. As concorrentes Magazine Luiza e Via caíam 8,9% e 10,4%, respectivamente, ao meio-dia.