Com mais de duas décadas atuando em comércio exterior, um executivo de uma grande indústria do setor de eletroeletrônicos está vivendo uma situação que nunca passou na vida. “E espero não passar de novo”, disse ele ao NeoFeed.
Ele se refere ao colapso da cadeia de suprimentos das mais diferentes indústrias no Brasil e no mundo, que está elevando o preço do frete a níveis recordes, tem causado falta de contêineres no mercado e levado a cancelamentos ou suspensão de escalas. É o que esse executivo resume como a tempestade perfeita. “Onde tem contêiner, não tem navio. E onde tem navio, não têm contêiner”, diz essa fonte.
Da Apple, que teve um lucro recorde de quase US$ 100 bilhões, mas alertou que as interrupções na cadeia de suprimentos estão atrapalhando a fabricação do iPhone, a fabricantes de eletroeletrônicos e produtores rurais brasileiros que estão literalmente a ver navios, o caos logístico está levando a dificuldades de abastecimento e ao aumento de preços de produtos manufaturados.
Os preços das tevês, por exemplo, subiram mais de 40% nos últimos 12 meses, segundo estimativas consultoria IT Data. Os dos smartphones, 35%. “A demanda por esses dois produtos estava muito alta”, diz Ivair Rodrigues, diretor de pesquisas da IT Data, que esclarece que a alta do dólar e o preço de componentes eletrônicos também ajudaram a fazer o preço desses dois itens avançar.
Outro dado ilustra esse caos. O nível de navios parados, sem conseguir atracar, é de 12,5% no mundo, segundo estimativa citada por Leandro Carelli Barreto, sócio da Solve Shipping Intelligence, uma das principais consultorias dessa área. A taxa normal é próximo de zero. “É como se você tirasse o terceiro maior armador do mundo do mercado”, diz Barreto.
O resultado dessa escassez fez os preços dos fretes marítimos crescerem em uma velocidade assustadora. Um contêiner de 20 pés, vindo da Ásia, saiu de um preço médio de US$ 1.950, em janeiro de 2020, antes da pandemia, para US$ 9.550, em setembro deste ano, alta de 390%, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI), elaborados com dados da consultoria Solve.
Mais: um contêiner de 40 pés teve uma alta ainda maior, passando de US$ 2.050, em janeiro de 2020, para US$ 11.200, em setembro deste ano, um avanço de 446%.
O preço de um contêiner de 40 pés passou de US$ 2.050, em janeiro de 2020, para US$ 11.200, em setembro deste ano, um avanço de 446%
Esses dados são preços médios. Mas o colapso da cadeia de suprimentos explodiu os contratos de longo prazo com os armadores, como são chamados os proprietários dos navios, fazendo a maioria das empresas que depende de importação e exportação a negociar no mercado spot, em que os preços são definidos diariamente.
“Antes da pandemia, eu pagava US$ 3 mil por um contêiner de 40 pés saindo de Xangai. Agora, está na casa US$ 20 mil”, diz o presidente de uma grande empresa de tecnologia, que não quer se identificar.
A percepção é a mesma na Multilaser, empresa com um modelo intimamente ligado à China. “Os contêineres estão muito caros, quase 12 vezes o piso histórico, o que encarece muito os produtos importados”, afirma Alexandre Ostrowiecki, CEO da Multilaser, dona de um portfólio de mais de 5 mil produtos eletroeletrônicos que mescla a produção local com componentes e produtos prontos importados da China.
A crise logística, por enquanto, não está causando desabastecimento de produtos no mercado brasileiro, como acontece com a indústria automobilística que vem sofrendo com a falta de componentes para a fabricação de carros no Brasil e no mundo.
De uma forma geral, a maioria das empresas está conseguindo se abastecer com produtos importados. Mas não há mais previsibilidade de quando os itens chegam para a fabricação.
“O atraso de matéria-prima virou uma constante”, diz um executivo de uma indústria eletroeletrônica. “O estoque de segurança virou nossa válvula de escape e temos feito mudanças repentinas na produção para manter a fábrica rodando constantemente.”
Uma das alternativas é aumentar a produção com itens nacionais. “Esse contexto favorece a produção local, especialmente das partes mais volumosas, como injetáveis plásticos”, afirma Ostrowiecki, da Multilaser. “E estamos em plano de aceleração para tentar, o mais rápido possível, produzir em casa e fazer economia desse frete, que é tão pesado.”
Como parte desse plano, a Multilaser está investindo R$ 154 milhões na ampliação de sua produção, atualmente distribuída em Extrema (MG) e Manaus (AM). Nas duas unidades, a companhia fabrica placas de circuitos integrados e monta produtos como computadores, tablets e celulares.
“O atraso de matéria-prima virou uma constante”, diz um executivo de uma indústria eletroeletrônica
A injeção de recursos envolve iniciativas como o aumento da estrutura da fábrica de Extrema e a instalação de linhas de injeção plástica, telas de computadores e produtos como liquidificadores, ventiladores e batedeiras. Em Manaus, a novidade é a fabricação de televisores.
Com essas medidas, a Multilaser projeta sair de um índice atual de 70% do portfólio produzido no País para 80% até meados de 2022. Mas, não custa lembrar, boa parte dos produtos da empresa precisa de componentes que vêm, em sua maioria, da China.
O que explica o caos
Como um acidente aéreo, não há uma causa única para esse momento da logística mundial. Segundo especialistas com os quais o NeoFeed conversou, a crise é anterior a Covid-19, mas foi agravada pela pandemia do novo coronavírus.
Os armadores vêm passando, desde 2008, por problemas financeiros, o que levou a uma consolidação do setor. Atualmente, as quatro maiores empresas da área detêm uma fatia de quase 60% do mercado. A líder Maersk, por exemplo, tem uma participação de 17%.
“O ano de 2020 começou com uma tendência de melhorar, com a oferta e a demanda se encontrando novamente, depois de uma década de prejuízos bilionários”, diz Barreto, da Solve Shipping Intelligence. “Aí, veio a pandemia.”
Em um primeiro momento, o mundo parou – inclusive os navios, que ficaram “estacionados” sem carga para transportar ao redor do mundo. Mas, a partir do terceiro trimestre do ano passado, com a injeção de liquidez mundial patrocinada por bancos centrais de todos os cantos do planeta, o consumo voltou com toda força.
“Para surpresa de empresas dos Estados Unidos e da América Latina, incluindo o Brasil, o consumidor não parou de gastar, mas produtos de escritório, tintas, material escolar e até equipamentos de ginástica tiveram um excesso de demanda de até 400%”, afirma Alfonso de los Rios, CEO da Nowports, startup mexicana que monitora em tempo real contêineres ao redor do mundo.
Esse crescimento da demanda não parou de crescer. E, pouco a pouco, foi levando a um colapso da estrutura logística. O encalhe do navio Ever Given, da empresa Evergreen, que fechou o canal de Suez em março deste ano, foi a cereja no bolo de uma situação que já beirava o caos.
Mas não há nada que não esteja ruim que não possa piorar. Em setembro deste ano, o porto de Los Angeles contou com um número recorde de mais de 70 navios esperando para atracar. O motivo? As malhas rodoviárias e ferroviárias americanas não estavam dando conta de transportar a carga que chegava para ser desembarcada, provocando um estrangulamento que atingiu os portos.
O colapso do porto americano fez com que o termo “cadeia de suprimentos” fosse citado mais de 3 mil vez em calls de resultados de empresas do índice S&P 500, que reúne as maiores companhias dos Estados Unidos, segundo levantamento da Bloomberg – um recorde em comparação ao ano passado.
Até o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se meteu no problema, ao se reunir com representantes da indústria portuária americana no começo de outubro. Entre as decisões tomadas, o porto de Los Angeles passou a funcionar 24 horas por dia, sete dias por semana.
No Brasil, não há congestionamentos de navios nos portos. O problema é o custo do frete e a dificuldade de conseguir contêineres para importar e exportar os produtos. “Espaço em navio hoje é um item escasso” diz Carlos Souza, fundador e COO da LogComex, empresa que coleta dados de comércio exterior.
O problema ainda deve persistir por um longo tempo, mas já há boas notícias no horizonte – ou pelo menos, não tão ruins. “O custo do contêiner parou de subir e estacionou na faixa de US$ 12 mil a US$ 13 mil”, diz Ostrowiecki, da Multilaser.
Como os armadores estão ganhando dinheiro, eles devem começar a comprar novo navios. Mas embarcações desse porte demoram muito anos para ficar prontas. A expectativa é que, de forma estrutural, o problema se resolva entre 2023 e 2024. “No curto prazo, acreditamos, torcemos e rezamos que a situação comece a melhorar no primeiro semestre de 2022”, afirma Barreto, da Solve.
O executivo do setor eletroeletrônico do início dessa reportagem diz que o custo do frete já caiu 15% em outubro. E acredita que o caos logístico deve se normalizar até o fim do ano. “O preço do contêiner vai cair para US$ 8 mil, mas não voltará aos US$ 2 mil, US$ 3 mil que pagava antes da pandemia.” Bem-vindos ao novo normal.
(Colaboraram Moacir Drksa e André Italo Rocha)