Há pouco mais de um ano, a Latam vivia uma situação delicada. O grupo estava se reestruturando dentro do processo de recuperação judicial nos Estados Unidos e via a Azul se engajando com credores para adquirir suas operações.
Passado um ano, a situação mudou. A maior empresa de aviação da América Latina deixou o Chapter 11 no começo de novembro, superando grande parte dos efeitos da pandemia, e está em uma posição financeira melhor.
O grupo emergiu do processo de reestruturação com 30% a menos de custos e reduziu sua dívida bruta em 35%, para cerca de US$ 6,8 bilhões. No terceiro trimestre, a receita operacional somou US$ 2,6 bilhões, ficando praticamente em linha com o apurado no mesmo período de 2019. Atualmente, a capacidade do grupo atingiu 81% dos níveis pré-pandemia.
Com a recuperação judicial ficando para trás, o plano agora é para recuperar o tempo perdido. E, no Brasil, isso passa por explorar o mercado interno. “Abrimos novas rotas que não tínhamos antes da pandemia, para aproveitar essa recuperação mais rápida que temos visto no mercado doméstico”, diz Jerome Cadier, CEO da Latam Brasil, em entrevista ao NeoFeed.
O mercado interno tem puxado a retomada da Latam Brasil, com a companhia adicionando 12 novas rotas. Agora, a companhia aérea voa para 54 aeroportos nacionais. Desde o segundo semestre de 2021, ela começou a oferecer viagens para lugares como Jericoacoara (CE), Presidente Prudente (SP) e Sinop (MT).
Por mais que os economistas estejam pessimistas com a economia brasileira no ano que vem, Cadier vê as viagens de turismo crescendo cada vez mais, citando a facilidade de se deslocar internamente, sem que as pessoas tenham que se preocupar com diferentes protocolos sanitários.
Se o executivo que comanda as operações da Latam desde maio de 2017 demonstra otimismo com as perspectivas para o setor aéreo em 2023 e em 2024, ele entende que o Brasil ainda tem muito a evoluir para estabelecer um mercado sustentável e que atenda a demanda reprimida dos brasileiros querendo voar.
"A insegurança regulatória no Brasil é gigante", diz Cadier. "Uma companhia companhia low cost dificilmente vai entrar no Brasil, porque esse tema é parte do modelo de negócios dela, separar o preço da passagem do preço da bagagem."
De acordo com ele, esses são fatores que tornam o mercado brasileiro bastante difícil para um novo entrante. "A Avianca não conseguiu, a Itapemirim também não", referindo-se a duas companhias que não conseguiram competir no mercado brasileiro e foram à falência.
Mesmo assim, Cadier vê espaço para crescer. “O mercado aqui é pouco desenvolvido comparado com o Chile e ele podia ser duas vezes maior do que é se a gente tivesse uma aviação mais barata.”
Acompanhe os principais trechos da entrevista ao NeoFeed:
Como a Latam Brasil sai da recuperação judicial?
Trabalhamos praticamente dois anos e meio para conseguir fechar esse capítulo do Chapter 11 nos Estados Unidos. Saímos bastante confiante, super fortalecidos, porque a empresa se transformou durante esses dois anos e meio. A Latam reduziu a sua dívida e seus custos operacionais. Estamos otimistas e prontos para competir, em um momento em que o setor está competitivo e pronto para crescer.
Quais lições você tira desse período de pandemia e de recuperação judicial?
Uma das lições foi ter reagido rápido ao impacto da pandemia na demanda. A Latam tomou ações muito rápido em 2020, incluindo a decisão de se reestruturar através do Chapter 11, numa época em que todo mundo achava que em dois, três meses estaria tudo bem. Outra lição foi a capacidade de se adaptar a mercados diferentes. Em janeiro, teve a crise da ômicron e no espaço de alguns dias tivemos que repensar absolutamente tudo. Não conseguíamos executar os voos que tínhamos planejado. E a companhia conseguiu se ajustar rapidamente. Isso tudo muda a maneira como a empresa pensa para frente, com olho em flexibilidade, capacidade de se ajustar.
Como a operação da Latam evoluiu, em termos práticos, após a recuperação judicial? Que tipo de mudanças vocês conseguiram implementar?
Estamos fazendo uma utilização mais inteligente dos aviões dentro do grupo, deslocando entre países de acordo com a demanda. Isso já era possível, mas era um processo mais demorado. Outro exemplo é na contratação de mão de obra. Antes, tínhamos como característica ter mão de obra própria. Hoje, no Brasil e nos outros países, funcionamos muito bem com uma rede de terceiros, que nos dá capacidade para colocar e retirar a mão de obra mais rápida do que se a Latam fosse passar por todo o processo de recrutamento, seleção, treinamento. Revisamos também os compromissos com frota. As companhias aéreas assumem compromissos de trazer aviões que amarram a companhia bastante para frente. Aproveitamos o Chapter 11 para reajustar todos esses compromissos e deixá-los mais flexíveis.
"Estamos otimistas e prontos para competir, num momento em que o setor está competitivo e pronto para crescer"
Como está a retomada das atividades no pós-pandemia?
A retomada está em ritmos diferentes quando olhamos às viagens domésticas e às internacionais. Ela também é diferente quando olhamos para o passageiro que viaja a negócio e aquele que viaja por um motivo de turismo. Tivemos uma recuperação mais rápida e mais forte do turismo no doméstico. E mais lenta do viajante a negócio e das viagens internacionais. Estamos nos mesmos patamares no doméstico em relação ao que estávamos antes da pandemia. No internacional, estamos mais ou menos a 80% do que estávamos. A recuperação do internacional vai continuar gradual em 2023 e a expectativa é de que só no fim do ano, ou durante 2024, voltemos aos patamares de antes da pandemia.
Essa mudança no mix de passageiros é estrutural ou é uma questão momentânea?
Parte disso é estrutural. As pessoas estão utilizando muito mais as plataformas de videoconferência e houve uma aceleração da utilização de maneiras alternativas de trabalhar de forma remota. Então, parte do tráfego de passageiros a negócios não volta. No turismo, houve o efeito contrário. Apesar de termos tido restrição durante a pandemia, muita gente está viajando a turismo e está conhecendo mais o Brasil, porque é mais barato e não tem as dúvidas sobre câmbio e das restrições sanitárias. Esse fatores talvez tenham efeito longo, ou seja, vamos ter mais turistas no doméstico e vamos ter um pouco menos de passageiro a negócio.
A Latam tem fama de ser menos conhecida por suas rotas nacionais, comparado com outros competidores. Vocês se viram obrigados a adaptar a forma como atuam?
Tínhamos mais participação do que a Azul e sempre disputamos a liderança com a Gol. Sempre fomos superrelevantes no mercado doméstico, mas também tínhamos um braço muito forte em internacional. E a tendência, às vezes, é ver a Latam como um player internacional. Reforçamos as operações domésticas, porque o mercado estava mais aquecido. Pela competitividade que ganhamos com o Chapter 11, começamos também a abrir mais rotas. Abrimos mais de 12 rotas novas que não tínhamos antes da pandemia, para aproveitar essa recuperação mais rápida no doméstico.
Você se mostra bastante otimista com a retomada do mercado em 2023. O que, para você, vai puxar esse crescimento?
Eu vejo duas alavancas de crescimento. Primeiro, cada vez ficamos mais longe dos receios da pandemia. Os passageiros ficam mais tranquilos para viajar, para eventualmente passar mais tempo fora do país. Antes tinha muito receio do que aconteceria se o passageiro ficasse doente, se a regra de entrada ou saída do país mudasse. As pessoas estão voltando a confiar mais. Outro fator é puramente macroeconômico. Hoje, estamos vivendo uma situação de petróleo muito caro, em função da guerra da Ucrânia, mas, nos últimos meses, ele foi apresentando tendência de diminuição do preço. Ele ainda está muito caro e isso faz com que o preço da passagem permaneça alto. Mas a expectativa é que, gradualmente, a gente veja o petróleo em tendência de baixa. O setor vai ter um crescimento espetacular? Não, mas deve superar os números de 2019.
Você não acredita que o setor será afetado pelos cenários negativos sobre a economia brasileira que estão sendo traçados pelos economistas?
Quando olhamos os outros países, eles estão mais preocupados com uma recessão mais forte do que eu acho que deveríamos estar aqui no Brasil. Vai ser um ano espetacular de crescimento de PIB? Não. E eu estaria mentido se dissesse que temos segurança absoluta no câmbio. Mas seria estranho ver o dólar oscilando muito fora da faixa de R$ 5,20 a R$ 5,50. Com o PIB crescendo entre 1% e 2%, a aviação cresce, só por esse efeito, de 3% a 4%. A grande dúvida é a velocidade da queda do preço do petróleo. Isso é muito difícil de prever. Mas imagino que, em algum momento, p conflito da Ucrânia comece a caminhar para uma solução. E, com isso, devemos ver os mercados um pouco mais estáveis para combustíveis. E uma eventual recessão mundial também vai ajudar o petróleo a recobrar patamares mais baixos, porque com um mercado mais cauteloso, o petróleo não vai alcançar o nível de preço deste ano. Por isso, espero ver as tarifas caírem ano que vem em função disso tudo.
Considerando os resultados obtidos com a reestruturação e as perspectivas para o mercado e para a economia, quais são as prioridades da Latam Brasil para 2023?
A primeira tem que ser e sempre será manter uma posição competitiva de custo, buscando alternativas para manter esse custo o mais baixo possível, para passar isso para tarifa e estimular o brasileiro a voar. Custo para mim continua sendo a prioridade número um da operação. A segunda: a gente vem trabalhando, nos últimos meses, na melhora nos sistemas da companhia. É melhoria no site, no aplicativo e no programa de fidelidade. Tem toda uma linha de melhorias que a gente tem que fazer na interface com o passageiro, no antes e depois do processo de compra. Você já vê o site da Latam muito melhor do que ele era antes, mas ainda tem muita coisa para lançar, que está no forno e que deve vir em 2023.
"O setor vai ter um crescimento espetacular? Não, mas deve superar os números de 2019"
Como você avalia a frente regulatória? De que maneira ela tem influenciado nas operações da empresa?
Ela é muito importante. A apreciação do veto do governo Bolsonaro à volta da franquia de bagagem é um tema que ainda não foi resolvido e tem que ser resolvido. Não podemos ter um atraso regulamentar no Brasil. Isso afeta a nossa capacidade de crescer, de oferecer tarifas mais baixas ou um produto mais adequado para o passageiro. Outro exemplo é que, no Brasil, o combustível aéreo é um dos mais caros do mundo. Mais de 90% do combustível de aviação do Brasil é produzido aqui e é difícil entender que eu tenho que pagar um preço parecido com o preço de importação. Tem ainda o tema da judicialização, que também adiciona custo à operação brasileira: 98% dos processos que o grupo tem é no Brasil, que responde por 55% das operações do grupo. É muito caro a quantidade de advogados que temos que ter, de processos na Justiça, de indenizações que são pagas, principalmente para consumidores por pleitos que não têm cabimento.
Como assim?
As companhias aéreas brasileiras são as mais pontuais do mundo. A Latam foi, durante os últimos três anos, a companhia aérea mais pontual do mundo, que cancela menos voos. Nossas taxas de extravio e de dano de bagagens são a metade da média mundial. Mas 90% das ações de consumidores contra as companhias aéreas estão no Brasil e são ações que geram indenizações. O cliente reclama porque o aeroporto de Congonhas fechou, porque um avião teve seu pneu furado, demorou um tempo para tirar o avião da pista e teve uma série de voos cancelados. Ele entra na Justiça contra a companhia aérea e o juiz dá ganho de causa, além de ganho moral para o passageiro, de R$ 5 mil a R$ 10 mil, por causa desse cancelamento de voos, que nem foi de responsabilidade da Latam. Esse tipo de coisa faz com que a gente tenha um custo absurdo aqui no Brasil.
Você está otimista de que os pleitos do setor possam ser atendidos nesse novo governo?
A batalha contra a judicialização começou há quatro anos. Ela vai ser longa e não depende do governo ou da Anac, ela precisa ser enfrentada junto com o Judiciário. Eu não tenho expectativa de mudança radical nos próximos anos. Quando a gente olha a regulamentação, por exemplo da bagagem, essa é uma que tem que ser apreciada com muito carinho. E eu diria de maneira urgente, porque a incerteza é quase pior do que uma decisão ruim. E a questão do combustível, estamos trabalhando nos últimos seis meses numa mesa que tem a participação da Petrobras, das distribuidoras, dos aeroportos, de todas as companhias aéreas para tentar avançar nesse tema. E também com os Estados, porque tem também uma questão de ICMS. Esses pontos fazem parte da agenda que apresentamos para a equipe de transição.
Considerando as expectativas para o crescimento do mercado e também as questões regulatórias, como você analisa o cenário competitivo? Acha que é possível a chegada de novas companhias aéreas ou a chegada de uma nova empresa será prejudicial para o setor?
Eu acho que o mercado brasileiro pode crescer muito. Nos últimos anos, o País registra 0,5 viagem por habitante por ano. No Chile é 1,2. A gente voa muito pouco no Brasil e o País não tem uma infraestrutura rodoviária ou ferroviária eficiente. O mercado brasileiro pode ser muito maior do que é, e ele pode e deve ter mais concorrentes. Mas nos últimos oito, nove anos, ele não cresceu muito. Teve uma situação macroeconômica ruim. Além disso, as companhias que operam aqui são muito eficientes. Concorrer com essas empresas não é fácil. A Avianca não conseguiu, a Itapemirim também não. Fora que a gente está discutindo se pode ou não cobrar mala. A insegurança regulatória no Brasil é gigante. Uma companhia companhia low cost dificilmente vai entrar no Brasil, porque esse tema é parte do modelo de negócios dela, separar o preço da passagem do preço da bagagem. Todos esses fatores tornam o mercado brasileiro bastante difícil para um novo entrante.
Ainda no tema da concorrência, a Gol fez uma parceria com a colombiana Avianca, criando a holding Abra. Como você vê esse movimento? É uma tendência do setor?
Eu ainda não tenho clareza total da natureza desse movimento da Gol. Eu acho que ainda está se discutindo se a Avianca e Viva (companhia aérea colombiana) podem ou não operar junto. Então, acho que ainda tem muitas dúvidas de como isso funcionará. Mas isso é uma tendência natural. Quando você vê Air France e KLM, British Airways e Iberia, ou quando vê movimentos que não são de formação de grupos, como a nossa parceria com a Delta em relação às operações entre América do Sul e do Norte, são buscas de parcerias por uma maior competitividade. Acho que essa é uma tendência clara e irreversível.