O planejamento sucessório no Brasil vive um momento de insegurança jurídica. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidirá qual é a base de cálculo do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), conhecido como imposto sobre herança, em julgamento que pode mudar drasticamente quanto as famílias pagam nesse imposto.

A decisão, que não tem data para acontecer, mas é estimada para o primeiro semestre de 2026, será tomada em recursos repetitivos e terá repercussão para todo o País. Enquanto isso, milhares de processos se acumulam nos tribunais e os donos de grandes fortunas ficam em dúvida se devem acelerar ou pausar suas doações e como fazê-las.

Segundo levantamento do escritório Farroco Abreu Advogados, em parceria com o family office Brainvest, apenas no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, são mais de oito mil processos que discutem questões relacionadas ao arbitramento de valores pelo fisco paulista para fins de cobrança do ITCMD.

“É natural que os fiscos estaduais reajam quando percebem janelas de oportunidade sendo utilizadas em larga escala. O problema é quando essa reação acontece sem critério uniforme e com base em interpretações administrativas”, afirma José Dummont, head do family office solutions da Brainvest.

“Esse é o peso real da insegurança, que não aparece apenas nos cálculos, mas no dia a dia de quem precisa planejar sua sucessão”, complementa.

O caos atual decorre de uma questão simples. Como o ITCMD é um imposto estadual, cada estado define sua própria base de cálculo. As diferenças são enormes. Alguns usam o valor venal do IPTU, que é mais baixo. Outros criaram tabelas próprias que tentam chegar ao valor de mercado.

No caso das doações de cotas de empresas não listadas, comumente os patrimônios são integralizados em holdings pelo valor de custo declarado no imposto de renda. Quando as cotas são doadas ou transferidas, algumas legislações estaduais, como São Paulo e Mato Grosso, permitem usar como base o capital social.

Mas o fisco e as Fazendas estaduais têm entendido que o valor correto seria o valor de mercado, que, em geral, é bem acima.

“Esse limbo para a base de cálculo do ITCMD é um cenário caótico. Cada estado faz de um jeito. Já houve casos no Rio de Janeiro que o Fisco disse qual é o valor do imóvel e não o contrário. Na Bahia, o grande problema é com a participação societária”, afirma Lucas Babo, advogado tributarista da área de planejamento patrimonial e sucessório do Cescon Barrieu.

O conflito acontece porque as famílias fazem doações seguindo a lei estadual vigente, declarando os bens pelos valores permitidos. Depois, o fisco contesta esses valores com base no artigo 148 do Código Tributário Nacional, que permite a ele arbitrar a base de cálculo quando considera que a declaração "não inspira confiança", ou está muito "baixa".

Os riscos na mesa

Se o STJ validar o poder de arbitramento dos fiscos, todas as doações feitas nos últimos cinco anos podem ser questionadas - mesmo quando seguiram fielmente a legislação estadual.

"O risco de retroatividade existe. O STJ deveria proteger os contribuintes que usaram jurisprudências válidas até então. Senão, fica uma insegurança jurídica muito grande", diz Erlan Valverde, sócio do IW Melcheds Advogados.

Na primeira instância, os contribuintes vinham ganhando com um argumento simples: seguiram a lei estadual vigente. O fisco, então, não pode elevar a base por interpretação administrativa. Mas as decisões são contraditórias e os casos foram parar no STJ.

Em fevereiro de 2025, a Corte reconheceu, no Mato Grosso, a possibilidade de arbitramento com base no artigo 148. Em agosto, duas decisões do estado de São Paulo vão servir de base para a tese repercutir nas demais instâncias de todo o Brasil.

“Os contribuintes estão muito atentos à mudança de alíquota, mas a base de cálculo pode ter impacto muito maior. O que o STJ irá analisar agora é se os fiscos podem arbitrar contra a própria lei estadual e exigir um valor de mercado", afirma Tatiana Cappa Chiaradia, sócia da área tributária do Candido Martins Cukier.

O pior cenário seria o STJ permitir avaliações arbitrárias sem critérios técnicos mínimos. Hoje, quando leis estaduais preveem valor de mercado, estabelecem metodologias como fluxo de caixa descontado ou múltiplos de mercado.

Seria como um "cheque em branco" para os fiscos. "Abre-se espaço para subjetividade, arbitrariedade e aumento dos litígios", diz Abreu, do Farroco Abreu Advogados.

Por que agora?

Há alguns fatores que explicam os motivos de as Fazendas estarem lutando mais na Justiça por mais arrecadação, segundo os especialistas tributários ouvidos pelo NeoFeed.

O ITCMD não era um imposto muito importante. No Brasil, a sua alíquota é baixa, de no máximo 8%. Mas ele passará a ser uma importante ferramenta de controle de receita.

A reforma tributária vai extinguir ao poucos, a partir de 2026, o ICMS, que era a principal fonte de receita dos estados - esse imposto dará lugar ao IBS e ICS, que irão para a União, que depois redistribuirá as quantias. O ITCMD continua sendo um imposto estadual, com arrecadação sob controle dos fiscos estaduais.

Em paralelo, o crescimento do mercado de wealth management acendeu o alerta dos Fiscos já que, cada vez mais, famílias vêm fazendo o planejamento sucessório, movimentando valores maiores e antecipando os pagamentos.

“Se há cinco anos os estados não viam o ITCMD como relevante, agora eles perceberam que com apenas alguns casos de famílias endinheiradas podem resolver alguns de seus problemas”, afirma Chiaradia, do Candido Martins Cukier.

A esperança de pacificação

O Projeto de Lei Complementar (PLP) 108/2024, que regulamenta a reforma tributária, traz critérios mais claros para o ITCMD.

Na última versão aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), na quarta-feira, 10 de setembro, a base geral será o valor de mercado, com exceção para empresas, que permite usar valor patrimonial - como São Paulo faz hoje. Para imóveis e demais bens ilíquidos, mantém-se o valor de mercado.

Se aprovada, a lei pacificará a discussão com critérios técnicos e produzirá efeitos só para casos futuros – eles passam a valer após 60 dias e no ano seguinte à sua publicação.

"A própria tramitação do PLP leva os estados a entenderem de forma diferente e a quererem já arrecadar da mesma forma. E se não conseguirem, podem ainda mudar o texto e conseguir uma força de lei. É preciso toda atenção", afirma Babo, do Cescon Barrieu.

Mas mesmo com a aprovação do PLP, a decisão do STJ ainda impactará casos passados e a compreensão das novas regras, já que define a interpretação do que está no Código Tributário Nacional.

As famílias no modo espera

Diante de tantas incertezas, as reações se dividem. Muitas famílias pausaram doações até ter clareza sobre as regras. Outras preferem doar agora e "brigar na justiça depois". Os especialistas recomendam documentar tudo, ou seja, ter processos mais minuciosos, com diversas documentações que provem a escolha dos valores.

“Se a motivação de redução tributária é a grande motivação da família ela precisa pensar com calma, porque pode ser autuada. É preciso entender que mesmo usando da legalidade, o fisco pode entender que há abuso econômico e recorrer”, afirma Pedro Olmo, sócio da Sten Gestão Patrimonial.

A Brainvest está simulando os valores de ITCMD tanto com valores de IPTU, como de mercado, cotas de empresas o patrimônio líquido e o valor de mercado e demais hipóteses e mostrando aos clientes que vai tentar o melhor resultado com base na lei vigente, mesmo que ela possa ser questionada no futuro.

"Estamos simulando todos os cenários possíveis e mostrando aos clientes que vamos tentar o melhor resultado com base na lei, mas que ela pode ser questionada", afirma Isabela Almeida, wealth planner do family office solutions da Brainvest.

Neste limbo jurídico, quem não tem um valor relevante em bens ilíquidos não tem com o que se preocupar, pois a base de cálculo de dinheiro é bem clara: o montante presente.