Depois do come-cotas nos fundos exclusivos e da taxação das offshore, as famílias com grandes fortunas devem lidar com mais um aumento de carga tributária. E, desta vez, ela mexe em um tema restrito, quando não proibido: o xadrez da sucessão patrimonial.

A nova alíquota do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), que faz parte da tramitação da segunda parte do projeto de lei da reforma tributária e que deve se converter em lei federal ainda neste ano, está provocando uma corrida em busca de informações aos family offices e multi family offices e, principalmente, aos escritórios de advocacia para entender se faz sentido antecipar a sucessão.

Três grandes escritórios de advocacia especializados em sucessão patrimonial consultados pelo NeoFeed, o Candido Martins Advogados, Cescon Barrieu e o Choaib, Paiva e Justo Advogados Associados, relatam ter havido um aumento de cerca de 50% nas demandas jurídicas envolvendo planejamento sucessório, após a aprovação da reforma tributária.

“O aumento da tributação está colocando esse assunto tabu na mesa. A verdade é que para muitos patriarcas e matriarcas falar de sucessão é dizer que se chegou ao fim da vida”, afirma Mari Emmanouilides, sócia da Galapagos Capital. “Mas não é. Quem já está em idade avançada precisa pensar sobre o assunto. E a discussão do momento exige garantir as melhores condições.”

Com sanção do PLP 108/2024, a alíquota do ITCMD (que é um imposto estadual) passará a ser obrigatoriamente progressiva, com o teto limite definido pelo Senado (atualmente em 8%). Isso significa que os estados que ainda não possuem esse modelo de tributação serão obrigados a se adequar à progressividade. E grandes patrimônios ficarão na alíquota máxima, com faixa a ser decidida pelo estado.

Alguns estados já estão ajustados, como o Rio de Janeiro (4% a 8%), o Mato Grosso (2% a 8%) e o Ceará (2% a 8%). Mas alguns ainda possuem alíquotas fixas (e baixas) de ITCMD, como é o caso de São Paulo (4%), Bahia (3,5%), Minas Gerais (5%) e Paraná (4%). Ou seja, nesses estados a regra atual é bem vantajosa, o que impõe urgência na discussão familiar.

Quem ligou o sinal de alerta foi o estado do Amazonas, que em dezembro do ano passado decidiu se adequar à progressividade e passou o imposto fixo de 2% para a faixa de 2% a 4%. Como esse tipo de lei passa a entrar em vigor somente no ano seguinte e 90 dias após a publicação, as grandes fortunas do Estado têm até março para fazerem a sucessão na alíquota antiga.

"Temos clientes do Amazonas e está sendo uma correria. Uma mostra de que a qualquer momento outro estado pode resolver se antecipar e mudar”, diz Roberto Freitas, sócio da G5 Partners. “Claramente os estados irão aumentar as alíquotas teto, porque esse é o único jeito de ter uma progressividade e manter a mesma arrecadação. E eles podem ainda querer arrecadar mais."

O detalhe que pode fazer o imposto disparar

A mudança que poderá dobrar de 4% para 8% vai além da alíquota. O projeto de lei também mexe com a base de cálculo. Os bens precisarão ter o seu valor de mercado atualizado, o que muda totalmente o valor de bens ilíquidos e, assim, o total de imposto a pagar.

Se para as aplicações financeiras, que têm valores marcados a mercado diariamente, nada muda, para os demais bens há uma mexida considerável.

A lei até agora usa como base de cálculo para imóveis o valor venal de referência (que geralmente é bem menor que o valor de mercado). Segundo o projeto de lei, será necessário fazer uma avaliação do valor de mercado do imóvel para atualizá-lo, como se estivesse fazendo uma venda - o mesmo vale para fazendas e outras propriedades imobiliárias.

Ações ou cotas de empresas que não são listadas na bolsa de valores também precisão fazer o ajuste do valor de mercado. Isso significa que para famílias que têm grande patrimônio ilíquido, o impacto será muito maior que apenas a elevação da alíquota.

“Aqueles com grandes patrimônios imobiliários ou participações societárias podem ser duplamente afetados”, afirma Alamy Candido, sócio-fundador do Candido Martins Advogados.

Para exemplificar o impacto, o escritório Candido Martins Advogados fez uma simulação para o NeoFeed. Foi considerado um residente de São Paulo cujo patrimônio total de R$ 30 milhões é composto por bens imóveis, com valor venal de R$ 13 milhões, e participações societárias adquiridas há 30 anos, com valor patrimonial de R$ 10 milhões. Para complementar, as aplicações financeiras são de R$ 7 milhões.

Nesse perfil, a alíquota do ITCMD passa dos atuais 4% para 8%. A conta mais simples, no caso, é a da aplicação financeira. Basta trocar a alíquota de 4% para 8% sobre os R$ 7 milhões e o ITCMD devido passa de R$ 280 mil para R$ 560 mil.

Para os bens ilíquidos, quem deixar para fazer depois terá que atualizar o patrimônio. De acordo com as regras atuais, o indivíduo recolheria ITCMD de 4% sobre o valor venal dos imóveis de R$ 13 milhões, totalizando R$ 520 mil para realizar a doação.

Com a nova regra, ao longo de 30 anos houve apreciação do valor desses imóveis, que passaram a valer R$ 20 milhões. No cálculo do ITCMD com alíquota de 8%, o imposto devido salta para R$ 1,6 milhão - mais que o triplo do valor que seria devido atualmente.

Já sobre o patrimônio em participações societárias, nas regras atuais é possível recolher o tributo utilizando o valor patrimonial de R$ 10 milhões como base de cálculo, ou seja, R$ 400 mil pagos de ITCMD para realizar a transferência das ações e cotas que não são negociadas em bolsa de valores e ele tem participação direta.

Com a nova regra, é necessário reajustar a base de cálculo e considerar o valor de mercado dos ativos subjacentes. Assumindo que ele contratou uma empresa especializada para avaliar suas companhias e que o valor de mercado dessas empresas seja agora de R$ 15 milhões, se a transferência ocorresse com a regra nova, o ITCMD devido seria de R$ 1,2 milhão.

Na última linha, esse indivíduo com patrimônio calculado em R$ 30 milhões atualmente pagaria R$ 1,2 milhão de ITCMD nas regras atuais. Porém, se a transferência de patrimônio ocorrer nas regras propostas, o valor a ser pago será de R$ 3,36 milhões – quase três vezes mais.

Esse é um grande alerta para famílias com grande patrimônio ilíquido. No exemplo simulado, o novo imposto representa quase metade das aplicações líquidas a serem recebidas, o que exige um segundo planejamento: ter reservas líquidas para honrar com esse pagamento.

A reação das famílias

Com o projeto ainda em tramitação, há incertezas na mesa. Mas o caminho é mesmo o de uma elevação da arrecadação. O único jeito para garantir as condições atuais de transmissão de patrimônio é fazendo a transmissão antes da mudança da lei por meio de doação em vida de parte ou da totalidade dos bens.

“O assunto ainda é um tabu, então era empurrado para frente porque o imposto é baixo e não tinha nada que indicasse uma mudança”, afirma Pedro Olmo, sócio responsável pelo patrimônio patrimonial da Sten Gestão Patrimonial.

“Agora, com o incentivo financeiro, as conversas estão a todo vapor. Mas isso não significa que todos devam fazer a transmissão agora. Temos dito que o incentivo financeiro não é tudo”, complementa.

Muitos multi family offices estão orientando as famílias a não tomarem nenhuma decisão precipitada até que a lei fique clara. “O momento agora é de reflexão para entender qual é a estrutura mais eficiente. Não é o momento de execução. As famílias preferem agir quando as regras já estiverem definidas”, diz Marcos Macedo, da Faros Multi Family Office.

Além da indecisão sobre o texto final, há a questão de maturidade da família para a sucessão. O doador deve se sentir confortável e os herdeiros maduros para receber.

“Para alguns clientes estamos pedindo calma, porque não faz sentido. Quem tem filhos ainda pequenos pode não ser um bom momento. Há famílias que querem que seus filhos lutem para construir os seus patrimônios, e não se acomodem por já ter um”, afirma Emmanouilides, da Galapagos.

Para Felipe Russomano, da Cescon Barrieu Advogados, não há idade para pensar em sucessão. Há vários mecanismos de proteção aos donos do patrimônio, como a cláusula de reversão, para que no caso do falecimento dos filhos antes dos pais, o patrimônio volte aos pais. Ou usando da incomunicabilidade, em que o bem herdado não se comunique com cônjuges independente do regime de casamento que ele venha a fazer. E até mesmo vetar que esse herdeiro possa doar esse patrimônio a outra pessoa.

Para quem, no entanto, já deveria ter feito o planejamento patrimonial, a orientação é começar o quanto antes. Para Samir Choaib, sócio-fundador do Choaib, Paiva e Justo Advogados Associados, a expectativa é que a lei passe este ano com o governo em busca de arrecadação. E, quando sair, a demanda pelo serviço irá aumentar ainda mais.

“Já estamos com vários processos em andamento, mas com o tempo a procura irá aumentar mais. Em alguns casos, os sucessores não fazem ideia do que querem, e isso faz o processo ser demorado”, afirma Choaib.

Cada caso é um caso, mas, em média, são necessários de dois a três meses para pôr em execução um desenho de sucessão. E com a lei passando neste ano, é provável que haja um ‘congestionamento jurídico’ em razão de muitas famílias preferirem a regra antiga.

O risco é que esses prazos se estendam na Justiça e fiquem para 2026 – já na nova lei. “Nossa sugestão é que a análise seja concluída até meados de outubro para que dê tempo de realizar a implementação com cautela e certo tempo”, afirma Candido, da banca Candido Martins Advogados.